terça-feira, 6 de abril de 2004

Muitos mares



Tenho estado concentrado numa personagem. Se tiver tempo livre nos próximos dias, irei continuar a desenhá-la independentemente do enredo onde possa vir a comparecer. Aliás, o escorço que a fez vir ao ser já foi publicado em conto (se não me engano, num DN-A de 2001). Mas agora voltei a ter vontade de expandir essa minha personagem e de a fazer capilarmente desaguar em muitos mares. Há coisas assim, sem qualquer explicação. A única vez que uma personagem minha saltou de um romance para outro foi uma personagem secundária que aparece, quer em A Falha (1998), quer em As Saudades do Mundo (1999). Chama-se Dália e ainda a estou a ver com grande nitidez (muito pouca gente terá notado esta sequência, embora haja excepções - até cinematográficas).
Esta personagem que agora me tem interrompido a quietude pascal está nos antípodas de Dália. Não é jovem, não é compassiva, não é irradiante, não é bonita, não é serena e sobretudo não é doce. Em 2001, era assim que um jovem personagem observava este - apenas aparente - ser diabólico (aqui designado por XXX):

Olhava para os joelhos brancos e redondos, para as coxas a vaguearem de penumbra e formas espantosas, ou para os dedos que desciam sob a secretária a tentarem pôr ordem nos tecidos da saia, no suor, na vista desarmada e pura. E mais tarde, já na cantina, a professora dirigiu-se-me e perguntou se eu tinha lido bem o Principezinho do Saint-Exupéry. Li-o nessa noite e foi o que, no outro dia, saiu no exame. Além do mais, lembro-me que ela sorria durante a prova, que ela mexia os lábios como se voasse sobre relâmpagos que rasgavam o céu, que ela levantava a mão no ar com moleza e vagar, antes de cada 'très bien', 'très bien'. Depois... foram os encontros por acaso ou as coincidências forçadas, na pastelaria, junto ao cais das canoas, no parque e até à porta da discoteca da ponte, junto ao descampado; era já Julho e eu andava de calções a correr como um animal atrás da bicicleta ou de uma bola preta e branca, atrás dos abismos do jogo, atrás de uma iniciática dança de gritos, saltos e adulações que são próprias da idade, dizem. Era um narcisismo caprichoso e involuntário, mas que, ao longe, dentro do Taunus esverdeado, era atenciosamente seguido por XXX com as tranças já atadas no alto da cabeça.

É esta “professora” que anda agora no encalço ficcional da bela repetição. Tal como aconteceu com Dália, mas em voos mais altos. Juro.