terça-feira, 9 de março de 2004

Contravapor



Às vezes questiono os motivos que levam o ser humano a irritar-se. Uma irritação é sempre um contravapor súbito, às vezes imprevisível outras vezes salivar, às vezes hilariante outras vezes estigmatizado, mas sempre imediatista e primário. É coisa que se contém, ou que não se contém de todo. Há quem o contenha e dele faça gravidade, aperto, resguardo. Há quem não o contenha e dele faça discurso, atitude, conformação. Posso dar exemplos de coisas que me irritam e, por isso mesmo, valem o que valem: leões de cerâmica a coroar portais; a verve, as vestes e o cinzentismo do ministro da administração interna; a pseudo-arquitectura continuada da nossa orla costeira; os viras do Minho, os corridinhos mais a sul e outros folclores demasiado regionalistas; a arrogância vazia e repetitiva de certas esquerdas cristalizadas; a simulação de contracultura como fenotexto dos conservadorismos da moda; o fechamento argumentativo (em torno de uma narrativa, de uma especialidade, de um autor ou de uma corrente); os GNRs barrigudos, malcriados e discricionários; a malta aos gritos a gritar em redundância mental “não pagamos”; o desordenamento copioso das nossas cidades, etc.
A irritação é coisa de químicas, para utilizar uma linguagem dos apaixonados fogosos. Há qualquer coisa de esbraseado, de repelente, de antípoda ou de perverso na matéria que conduz à irritação. Às vezes, o que irrita é também o pólo secreto onde marcámos ajustes de contas de que nem nos apercebemos. Felizmente, muito do mais importante que nos rodeia fica aquém ou além da irritação: Bin Laden não me irrita (agonia-me), mas irritar-me-ia ler ou ouvir o discurso absolvicionista que o desculpasse por “compreender o sistema que o criou”. Marc Dutroux não me irrita (agonia-me), mas irritar-me-ia ouvir dizer nos média mais influentes que a única solução em casos destes é a pena de morte. O chefete da Coreia do Norte não me irrita (agonia-me), mas irritar-me-ia ouvir dizer a alguém no ocidente que aquele paíseco é muito provavelmente uma democracia (só não me irritaria, se tal tivesse sido dido pelo pobre diabo que o disse cá em Portugal).