quarta-feira, 16 de julho de 2003

O meu regresso a Portugal, em 1990, marca uma nova etapa da minha vida e com ela surge o meu romance, Sempre Noiva. A virtude deste novo romance (que viria a ser publicado em 1996) não foi a de agarrar o mundo, o cosmos, ou a chamada divina proporção. A sua virtude terá antes sido a de tentar focalizar as minhas origens, Évora e o Alentejo mais concretamente, como um local ao qual já é possível voltar a dar toda a atenção poética e todo o carinho universalista, após a grande viagem. Em Sempre Noiva narra-se uma história cortada por um imenso tempo de gestação e onde a imaginação imaginante e a imaginação imaginada aparecem realmente divorciadas. Contudo, a força descritiva, o ímpeto da relação entre personagens, a poética da cidade e algum burlesco policial, à moda de Godart, fazem de Sempre Noiva um romance possível e, em parte, para ser justo, conseguido.
A meio da década de noventa, o essencial da minha escrita podia resumir-se em cinco pontos: a) emergência de personagens mutantes, errantes, "arealistas" (o termo é do neo-pragmático Rorty) e desenhados através do horizonte da dúvida; b) a paixão pelas cidades e pelas paisagens, não só enquanto armadura discursivo-descritiva, mas também enquanto agentes e motrizes da acção; c) a simultaneidade das instâncias narrativas, quer as da terceira e primeira pessoas, quer a da segunda pessoa; d) a transfiguração contrastante e expressionista dos ambientes, através da fusão entre o quotidiano e o fantástico, ou o maravilhoso; e) e, por fim, o apelo diria cosmopolita como traço geral temático e local de embarque para a demanda de destinos possíveis por parte dos personagens.
Na segunda metade do anos noventa, a minha escrita sofreu algumas mutações. Caracterizaria, hoje em dia, essas mutações em duas direcções: a) um novo fôlego narrativo que se viria a projectar no domínio de materiais literários, sobretudo no tratamento das vozes, mas também numa certa tendência em transformar a sintaxe e a engenharia dos romances num elemento decisivo; b) o pôr em marcha, ao nível do texto e das relações suscitadas pela diversidade e pela novidade do pensamento contemporâneo, de uma escrita ensaística que viria a interrogar o saber, o mundo e a actualidade, acabando por influenciar, ainda que de forma não imediatamente visível e directa, a própria literatura.
O ponto de viragem foi o ano de 1996, logo após a defesa do meu doutoramento, quando escrevi o romance A Falha (1998) e o ensaio Anjos e Meteoros. Escrevi A Falha em cerca de três semanas, no Setembro solar de 1996. Entendi subitamente, de rompante, o percurso de uma história simples e eficaz, em contraste com os labirintos de construção até então habituais. A relativa unidade e coerência das tensões, a dimensão dramática esclarecida, o controlo da espacialidade e dos diversos tempos e ritmos, a dicotomia dos registos e a ideia de situação-limite única como tema fizeram de A Falha uma metáfora atraente que superou a ideia do tempo presente, ou geracional. Para mim, o romance A Falha transformou-se num sinal do que é mais perene na condição humana, isto é, a sua falibilidade diante do edifício, imaginário ou físico, mais pretensamente acabado e defendido (a metáfora da catástrofe iminente de que o 11 de Setembro foi infelizmente acto real estaria, de certa forma, aqui, em germe puramente ficcional no que acaba por ser, afinal, um atributo das angústias e das espectativas do nosso tempo).
De qualquer forma, A Falha apenas existiu literariamente a sós durante quatro meses, isto é, entre o mês do seu lançamento (Maio de 1998) e um belo dia de Setembro, quando o realizador João Mário Grilo me propôs a sua adaptação ao cinema, ou a adaptação da leitura que fizera do meu romance ao cinema. Entre esse Outono de 1998 e o Verão de 2001, altura das rodagens, sucederam-se cerca de quarenta meses em que redigi, por ampliação, novas partes (analepses, encarnações de situações noutros contextos, reinvenções de personagens e criação de novos) do que já era a intriga de A Falha, para que a enunciação, agora cinematográfica, encontrasse as suas próprias e mais adequadas soluções. Foi um trabalho muito positivo, concordante e realizado sempre em persistente diálogo com o realizador.
As Saudades do Mundo, romance saído a público em 1999, retoma o tema da grande viagem e a invocação do cosmos sem fim. A tragédia que estivera ausente em A Falha, pelo menos em A Falha literária, recobre agora a parte final deste romance que pretendeu abraçar, em jeito de despedida ao olhar puramente histórico, ainda que glosado, a continuidade moderna do século XX e a sua panóplia de secretas e bem sonoras crises. Mais do que uma definição de saudade, enquanto desejo do que não pertence a este tempo (ou enquanto locus que não se enquadra em todos os lugares possíveis), As Saudades do Mundo são a imagem de uma lenta iniciação que vai desde a voz selvagem e marginal, intertextualizada na e pela voragem de Malcolm Lowry, ao sigilo da finisterra portuguesa e daí, ainda, às chamadas "Epístolas de Cláudia aos de Limoges", onde o Médio Oriente volta a ser um lugar visceral e profundamente metafórico no cruzamento de todas as origens e destinos.
Aparentemente mais sedentarizado na minha imaginação, escrevo, ainda na cauda do século passado, o romance O Trevo de Abel (2001). Faço-o a pensar e a sonhar com Lisboa. Já não era sem tempo para um país que tem como periferia e como centro esse umbilical e intempestivo epicentro do fado. Escapei como pude às referências pesadas, Cesário ou Pessoa, por exemplo, e tentei que a poética e o caminho da história emergissem do olhar, do vislumbramento e da memória imediata dos lugares. Depois da imensa luz de As Saudades do Mundo, eu estava agora em condições de lançar os braços a este romance, enunciado ao longo de uma noite em que as águas do Tejo apareciam, por mistério, a luzir e a reflectir a cor da tinta-da-china.
É o meu romance mais alquímico, ainda que não fosse porque um homem, o herói ou protagonista, se transforma em fogo e em luz no final. É, por outro lado, um tríptico que narra a história de um homem que involuntariamente vive três vidas, sem saber a razão para tal e sem poder traduzir sequer para si e para os outros qualquer conformidade mais razoável acerca desse seu quase fáustico dom. Apresentador de concursos televisivos e notável figura pública, chulo azarado e viajante sem rumo pelos mares do Oriente e, por fim, taxista reservado e comedido na vila velha de Belas, eis o triângulo que, depois de aberto, se fecha num desenlace imprevisível e próprio apenas dos nautas aventurosos. Devo afirmar que é dos (meus) romances que mais gosto. Talvez por isso, continuasse a escrever sem intervalo algum, logo que soaram os primeiros minutos do século XXI.
E foi assim que o quase antigo culto de Van Gogh (muitas, muitas vezes, em Amesterdão, ia para a sala envidraçada do museu homónimo e para as esplanadas dos seus jardins) e, por outro lado, um certo regresso aos ambientes revivalistas da cidade de Rembrandt me atiraram ao que já é, neste momento, o meu último romance, Máscaras de Amesterdão (2002). Trata-se de um livro estranho, porque recente, muito influenciado pelos processos de depoimento utilizados no argumento fílmico de A Falha (escrito, na sua maior parte, no ano de rodagem, em 2001) e desenvolvido numa lógica que une, outra vez, o falso policial (o que acontecera, com já se viu, em Sempre Noiva) com a história da heroína predestinada, ao contrário de No Princípio Era Veneza, apenas a pequenos e singelos feitos. Máscaras de Amesterdão narra, pois, uma história seca, crua, irónica, onde trair e amar se fundem como ouro sobre azul. É a primeira vez que regresso literariamente a uma das cidades onde vivi mais anos e, por isso mesmo, uma das minhas cidades do mundo. De autobiográfico, neste livro, deverei realçar a paisagem, o espaço e o encantamento transfigurado dos abismos da memória.
Ou não fosse esse o rosto, apeado já da máscara, que melhor define e persegue as vias de um romancista.