Vivemos ao sabor da contingência. Se Christopher Hitchens não tivesse estado em Portugal, não teríamos falado de ateísmo. Trata-se de um procedimento mais geral e bem português: somos anfitriões com dons especulares. E, neste caso, a primeira pessoa do plural apenas refere uma mão cheia de pessoas, porque as demais têm mais que fazer a atravessar a ponte, a ir ao hiper ou a atrair a si um oceano qualquer de calorias.
Mas o ateísmo tem que se lhe diga, porque postula um mundo sem deus (ou sem deuses), quando deus (ou os deuses) corresponde a uma das imagens fulcrais com que o homem soube, um dia, traduzir a sua experiência, os seus medos - como tão bem explicou Blumenberg - a sua inquietação e sobretudo o fruto da sua impotência no planeta. É fácil ser saramaguês (a expressão é literária e tem origem em Eugénio Lisboa) e profundamente matérico e repetir o que os semióticos soletram de cátedra, ou seja: que tudo o que se passa na crença dos humanos é fruto da cultura que incorporam e das imagens que, ao longo do tempo, nela se acamam.
Somos falados através de imagens, ritos, ruminações e repetições prosaicas. Mais do que falar, somos falados - e pensados - através de linguagens e mil e uma regras, a maior parte delas voláteis e pouco eficazes (tal como a miríade de imagens que compõe o "proto-si", explicado por Damásio em O Sentimento de Si).
O ser humano habita uma espécie de voz passiva, pretensamente amiga do ambiente (das leis da natureza), mas propensa a equívocos e a solavancos do espírito. Negar deus (ou os deuses) é o mesmo que negar o Oceano Atlântico: ele está lá, no flagrante do olhar de cada um de nós, Tal como está deus (ou os deuses) na impiedosa sucessão de marés vivas com que sempre catapultou o olhar profundo dos humanos. Confesso-o eu que nem sou crente.
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