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terça-feira, 2 de março de 2010

Accionistas da nossa preguiça?

Daniel Oliveira , com o generoso empenho que se lhe conhece de querer desinflamar os males do mundo através de uma justiça quase pura e sem remoques, tem tendência a criar um adversário que simboliza a fonte de todos os males e um conjunto tácito de razões que explicam os aromas do inferno. Nada de mal neste modo de criar diagnósticos. A melhor ficção passeia-se por oposições fixas, guerras entre mundos antagónicos, efabulações carregadas de névoa e redenção. Nada a dizer, pois então.

No seu mais recente texto "Segurança é desemprego, trabalhador é explorador", Daniel Oliveira refere um estudo da OCDE que aponta Portugal como "o país com menor mobilidade social" e conclui, no final do segundo parágrafo, que, segundo os maus da fita ("os nossos liberais de algibeira"), o facto se fica a dever à "sobrevivência de alguns trabalhadores "privilegiados" que ainda têm direitos". Como se em Portugal existisse uma tentação liberal com poder, importância e tradição e como se alguém desejasse com afinco, determinação e sentido último de vida retirar os direitos a quem trabalha.

Não creio que esta fasquia pressuponha um critério sereno (o adjectivo é cordato!). Pressuporá um ambiente manifestatário e alegórico, cheio de curiosos "hossanas" ao norte da Europa (hoje uma sombra do que era, quando vivi na Holanda... nos anos oitenta) e de 'unhas de fora' face a tudo o que seja anglo-saxónico. O sul da Europa, coitado, esse, cheio de maus exemplos, é que estraga tudo. E se ligarmos a Grécia a Portugal a coisa dá choque. De qualquer modo, à parte alguns esquematismos, creio que a falta de mobilidade é muito mais uma questão "cultural" (explicação francesa, dir-se-á) que se poderia sintetizar através do facto de termos sempre sido (secularmente) accionistas da nossa própria preguiça e da nossa falta de iniciativa.

Explico melhor: para um bom português, interessa muito menos o risco de criar uma pequena empresa que proponha um serviço inovador e útil (só criei a minha depois dos cinquenta anos...) do que tentar entrar - através de uma suave e ancestral 'dança com lobos' - em algum lado que "dê segurança" (numa repartição, num politécnico, numa câmara municipal ou num esquema familiarmente assistido). Modos de sobrevivência particularmente estáveis que tanto valem para a filha de um ministro (o que disse eu?) como para o mais incauto morador da Madragoa ou do concelho de Góis. Era verdadeiro o axioma de Vico que referia, na sua Scienza Nuova de 1725, terem as "ideias uniformes, nascidas entre povos que não se conhecem, um fundo comum de verdade".
(publicado hoje no Expresso)