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segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Viva a reacção!

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E o facto é que as pessoas adoram proclamações que as acordem da letargia, que as animem ou que as transformem em reguladoras de todos os males do planeta. As pessoas gostam de receitas fáceis, de milagres, de discursos em que tudo bata certo. As pessoas gostam de ter inimigos, fantasmas terríveis e bodes expiatórios que saciem as fragilidades, perdas e inconsistências. É da natureza humana. Muitas vezes não é “a causa” o que ‘está em causa’, mas sim o incontrolado ímpeto que leva as pessoas a ajuizar e a condenar objectos e práticas deste mundo com a mesmíssima lógica que terá inspirado as “Noites de Cristal”.
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Eu deixei de fumar em Março de 1997 e, portanto, não sou parte interessada na grande revolução de 1 Janeiro de 2008. Nem nunca o seria. Porque o mais grave é perceber que, à medida que a liberdade parece consolidar-se na
nossa vida pública e, fundamentalmente, na iniciativa de cada um de nós, mais estes fascismos invisíves parecem despertar e imolar a nossa tentação democrática. E o pior é verificar que, neste sistema (determinista) de vasos comunicantes, o vaso fascista se vai impondo à singularidade expressiva. Tenha que natureza tiver.
e
Na próxima quinta-feira, aprofundarei o tema na minha crónica habitual do Expresso Online. BOM ANO!

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Godard e o baú do natal

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Um dos meus presentes de natal veio do senhor Godard. Salvo seja. Mas não deixa de ser verdade que as História(s) do cinema, agora editadas por cá, são intensas e sobrepõem fragmentos de uma arte maior. Desde que emergiu do pasmo fotográfico até se tornar na reinvenção da mente, invadida por sonhos de carne e por vozes de sombra. Uma fantasmagoria apetecível, de massas. Como diz Godard, a certa altura, nada no cinema se funda numa realidade histórica. Tal como o cristianismo, o cinema cria uma narrativa, concede-a ao público e diz: acredita. Crê! E assim que os deuses se colocaram em fuga, entre as proezas variadas de Muybridge, Nietzsche, Freud ou Proust, eis que um novo deus singrou na alma das multidões, das revoluções e sobretudo das solidões. Uma arte maior que terá perdido a inocência por causa de duas guerras brutais e que não sucumbiu diante da roda viva das variedades de estúdio. Uma arte maior e, porventura, nem sequer uma arte. Um lapso. E, porventura, nem mesmo uma técnica, como sublinha o espesso Godard, omnipresente narrador desta sua longa saga que se vai deixando ver entre uma nuvem doméstica e permanente de tabaco. Augúrios muito actuais. Não sei se vos aconselho o DVD, sinceramente. Não é coisa que faça moda, hoje em dia, e muito menos aqui na turbulência feérica e amiúde vazia da blogosfera. Nestes dias de natal em que o mundo se imobiliza, vi, por acaso, o Tolentino poeta no ecrã da televisão. Dizia, com razão, que deixámos todos de perceber como se habita este ser que é o homem. Preenchimentos ininterruptos: é disso que é, realmente, feita a hemorragia televisiva. E era a isso que Tolentino se referia. Ao invés, o cinema, aquele cinema que Godard persiste em ver como sobrevivente a todas as mortes, como ressurreição quase pura, terá - ou teria - sido, possivelmente, a última arte a dar ao homem a sugestão do seu verdadeiro habitat, das suas sombras, dos seus pasmos e das suas figuras mais virtuosas. Em suma: um grande presente de natal retirado do minúsculo baú da imprevisibilidade (embora a minha capacidade de exaltação, nestes casos ligados ao sublime, já não seja o que foi há uns vinte anos).

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Episódios e Meteoros - 62

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(crónica publicada há uma semana no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)
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A nova Expo
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Quando o Outono entra em cena, há um período de limbo que costumo definir como nostálgico. E nunca soube porquê. Nunca descobri se é por causa da definição da luz, se é por causa das memórias balneares da infância, se é por causa do avizinhar do início das aulas, se é por causa da bonança que sucede aos excessos do sol, se é por causa do reaparecer normal das rotinas, se é por causa das folhas caídas dos plátanos, ou se é por causa de alguma antiga e perdida paixão outonal.
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Não sei, não faço ideia, mas sinto-o até ao mais recôndito mapa da minha pele. Como se entrasse em metamorfose e ameaçasse rever-me num ser que nunca fui e num tempo que, antes, afinal, nunca terá chegado sequer a existir. Deve ser isto mesmo a nostalgia: um desafio improvável que tenta acasalar uma sensação extraviada de belo com os passos inseguros e tímidos que acabam sempre por recortar o presente. Deve ser isso que tenho sentido, ano após ano, quando o oceano de Agosto dobra o cabo de Setembro e depois a boa esperança nublada de Outubro.
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Escrevo este texto em Dezembro, quase em cima do Natal, e, portanto, já imune a todos estes enredados estados de alma. Mas o mais curioso é que o país parece ter andado a mimar esta minha estranha metamorfose da nostalgia. Tem sido assim ao longo de todo o Outono, confesso.
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É o documentário sobre a Guerra de África do Joaquim Furtado que disputou audiências a concursos e novelas. É a série Conta-me como foi de Fernando Ávila e Pedro Miguel que passa aos domingos à noite. São os programas de António Barreto (o último versa o contraste entre a televisão que existe e a que existiu). É a história do livro sobre a afilhada de Salazar. Aliás, são todos os livros sobre Salazar e o seu tempo que nunca foi, frise-se bem, apenas o tempo de Salazar. E são lançamentos editoriais. Um deles um romance de guerra (António Brito, Olhos de caçador da Sextante) que o editor, João Rodrigues, referiu como parte desta «onda»: “Testemunho lúcido, preciso e realista, associado a uma estrutura ficcional com ritmo, que prende o leitor. O êxito da série documental de Joaquim Furtado levou-nos a considerar a sua publicação imediata”.
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Enfim, o Outono cobriu Portugal de uma nostalgia ávida e espessa. Forma interessante de glosar o presente. Tudo isto quase dez anos após a Expo. Lembram-se?
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Confesso que sempre tive a sensação de que faltava algo na Expo98.
Deve ter sido, de facto, este pavilhão tardio: o Pavilhão da Nostalgia.
E com esta nota amena vos acompanho até à fogueira do Natal.
Um bom lume, muita saúde e muitos presentes são os meus sinceros votos.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Natal - 10

Em Portimão, consegue ver-se o futuro no seu pior. Um mundo em que a maior parte do que se construiu, na segunda metade do século XX, não passa (não passará) de um monte de ruínas. Torres desconexas, péssimos acabamentos, marquises decrépitas, ferros a esventrar o cimento recente; azulejos esverdeados, cúpulas toscas, fontes de betão e sinaléticas sem uso. Perquenas casas e mansões belle époque resistem, isoladas e discretas, a esta polifonia sem acerto. Mas já lhe colocaram alumínio da cor do latão para precaver tal timidez.

Natal - 9

Portimão é hoje uma cidade vazia. Óptima para passar o natal. Da entrada da ponte velha, agora fechada ao trânsito, não se vê uma única pessoa. Sobra o rio, umas palmeiras recentes para impressionar turistas e uma atmosfera arquitectónica de ruína. O sol é o único e verdadeiro esplendor. O povão - que as revoluções sempre acreditaram ser a salvação do mundo - está nos hipermercados: esse verdadeiro "amanhã radioso" que canta para todos nós numa linguagem "made in China".

domingo, 23 de dezembro de 2007

Natal - 8

Há momentos em que prefiro um guindaste a um bom livro. Questão de ócio, de vertigens, de imperfeição habitual. Nos posts de baixo explica-se porquê.

Natal - 7

Entre livros imagina-se o pior. Nunca mais virá o próximo. É a mina que secou. É o fim. O apocalipse é a visão de deus com babete e tudo: um deus infantil que nunca brincou aos livros; escreveram-lhos todos. O que falta à sofreguidão do escritor actual é um bom profeta que lhe pudesse revelar os seus livros. Iria já ao Continente comprar o meu babete, se assim fosse. Há sempre uma alternativa: comprar o Sétimo Selo para oferecer amanhã à Tia Amélia.

Natal - 6

Há um encanto neste enlameado cor de salmão. Faz-me lembrar Jerusalém. Nas poças de água, vêem-se reflectidas as varandas vazias da época. Luzes vermelhas, intermitentes. Um casal de pombos hesitante. Guindastes e carros estacionados como forma de desenhar o espaço. Fecho a cortina e regresso ao milagre do Spyke.

Natal - 5

Quando a literatura era uma obra sacralizada, os escritores escreviam em nome de uma espécie de deus (espiritual ou ideológico). Hoje, esse vazio - ou essa saliência maior - passou a ser resolvido com a vertigem tecnológica. E quando se colocam palavras dentro dessa vertigem, o tal deus ri-se às gargalhadas. Como nunca antes tinha acontecido.

Natal - 4

O politicamente correcto (que tenta não sê-lo) exprime-se como a panela de pressão: expande-se por dentro, enquanto o mundo continua a respirar com as suas imperfeições habituais no lado de fora.

Natal - 3

Hoje é o meu primeiro dia livre desde Setembro. Há muito tempo que o ócio não me emoldurava um post. Sim, o ócio. Não ter mais nada a fazer do que auscultar a perdição. Ou olhar apenas a curva da serra.

Natal - 2

Duas nuvens recortaram o cume da serra. À mostra ficou apenas o lume que ludibria os cascos do grande cavalo que me olhou nos olhos. Um olhar terno e poderosamente enigmático.

Natal - 1

Olho para a silhueta da Serra de Monchique: um dorso de animal que desceu do primeiro sol da manhã e ali se instalou para esgotar os mais antigos fios da memória.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Há oitenta anos

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Magazine Bertrand - Leitura para todos, Livrarias Aillaud e Bertrand.
I Semestre de 1928. Segunda Série, Ano II. Nº 13, Esc, 5$00.
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(carregar para aumentar: vale mesmo a pena!)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Renas e musgos

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O Natal é uma era que passei a não gostar. Para mim, era ideal saltar de 20 para 27 de Dezembro num balão e, talvez, na companhia de René Clair. No meio do encanto hipnótico das crianças (único Natal que tem sentido), as famílias entram em estado de choque e as estatísticas dizem que os divórcios, as zangas intestinas e as desavenças (expostas ou guardadas a sete chaves) se tornam, de um momento para o outro, em vendaval. Este aspecto carnavalesco, que tanto toca a ilusão das cores como a sangria doméstica, é disfarçado pela música de cravo que ornamenta praças e alamedas (cada vez mais com a repetida e apertada concorrência dos anúncios da TMN). Enfim, eu posso refugiar-me e sorrir. Há quem prefira entrar no baile com a devida venda nos olhos. A cada um a sua liberdade. Seja como for, a ironia diz-nos que o Natal sabe bem à lareira, que chegam mensagens cordatas pelo mail, que há doces, que há redescobertas do passado (ir de bicicleta ao musgo), que há presentes. Que há surpresas. Tudo isso é verdade, mas tenho a sensação de que seria ainda melhor se nos deixassem realmente em paz. Eu disse "paz"?

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Cerveja e literatura - 61

Acabei de escrever o que viria a ser o meu primeiro romance no mês de Dezembro de 1982 (há um quarto de século precisamente). Lembro-me que num desses dias frios, quando passeava junto à margem de um canal (vivia então em Amesterdão), dei comigo a descobrir vários objectos no fundo das águas. Eram bicicletas, bacias, mangueiras e até um manequim. Esta visão translúcida valeu-me a escrita dos inícios desse meu (ilegível) primeiro romance. Ainda não existiam computadores e, por isso mesmo, eu punha-me a cortar com a tesoura o texto entretanto escrito em folhas improvisadas, para depois colar as tiras com fita-cola. Um verdadeiro Dziga Vertov, embora livre, à procura da secreta lucubração e montagem do seu discurso. E pelo meio havia muita cerveja. E da boa. Sobretudo belga. Vem esta rememoração a propósito da citação de hoje que é de Bukowsky e que me foi sugerida pelo António Manuel Venda:
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«Debatia-me com o meu primeiro romance. Todas as noites, enquanto escrevia, esvaziava meia garrafa de whisky e duas embalagens de cervejas.»
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(Charles Bukowsky, Mulheres; original: Women, 1978; tradução: Fernando Luís, Dom Quixote/FNAC, Lisboa, 2001, pp. 10/11)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Cerveja e literatura - 60

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No Capítulo IV de O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, o diálogo entre Dorian Gray e Lord Harry desagua, a certa altura, num Romeu e Julieta que este último descreve com desdém. Não é, pois, por acaso que o actor que desempenha o papel de Romeu surge caracterizado como "uma voz rouca de tragédia e uma figura como um barril de cerveja". Aliás, em pleno teatro, comparado a uma festa de casamento de "terceira classe", comiam-se nozes e "as mulheres circulavam com laranjas e cerveja gengibrada" ("Women went about with oranges and ginger-beer").
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(Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray - original, 1890; tradução: João do Rio - Hedra, S. Paulo, 2006, pp. 93/94)

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Simplex


Cartaz de promoção de Portugal
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Não, não se pode estar sempre a dizer mal. Depois de o Certificado de Admissibilidade ter demorado uns dias a mais, a verdade é que hoje constituí uma empresa em apenas 44 minutos (sim: quarenta e quatro minutos). Registe-se o facto e abençoe-se o futuro da neófita.

Volta ao Mundo - 12

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No início de Setembro, a Clara e o Miguel partiram de Portugal e, entretanto, já passaram por Madrid, Havana, Galapagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, Polinésia e Ilha da Páscoa. Neste momento, estão na Nova Zelândia. Hoje recebi a crónica referente à Polinésia Francesa (Tahiti, Moorea, Huaihine e Raiatea):
e
"Era uma vez. Uma imagem.
De uma família a receber-nos no Tahiti com colares de silêncio e flores brancas. Tínhamos acabado de chegar a um lugar onde tudo é diferente. Onde se apaga o resto do mundo e a terra nos foge dos pés. Onde tudo se passa dentro do peito.
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Era uma vez. Um sopro.
De verde. De azul. De acaso. A cada passo quase um abismo.
Numa primeira volta à ilha uma tontura de imensidão impede-nos de acreditar. Depois, de mansinho, conseguimos levantar os olhos. São as árvores que começam. Pesadas, debruçam-se para nos oferecerem fruta. Quase sentimos o alívio. Num instante seguinte, imperceptível, o mar inunda-nos com corais e transparência. E não deixamos de ser nós. Só passamos a ser mais terra.
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Era uma vez. Um espanto.
Numa ilha tão longe que pensamos que não existe. Em Huahine. Descobrimos que se pode respirar enquanto se vive a novidade. Um casal com cinco filhos mostrou-nos isso quando nos recebeu dentro da sua humanidade. Não sei o que aprendemos. Que os mortos se enterram na areia do jardim? Que se pode viver ao ritmo do sol? Que há árvores que nos abraçam? Não sei. Talvez não seja preciso aprender nada.
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Era uma vez. Uma dança. Uma montanha. Uma ilha sem ninguém.
Em que os braços falam da chuva e da memória com uma harmonia que não cabe nas mãos. Em que os pés sobem com surpresa. Onde a recordação é demasiado grande para se guardar.
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Era uma vez. Um início.
Quando nos despedimos e recebemos de cada pessoa um colar de búzios.
Não significam o nosso regresso. Emprestam a voz ao desejo que regressemos. Acrescentam-nos.
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Era uma vez uma crónica diferente. Sem linhas de invenção. Porque sim. E porque há momentos que nos transformam a vida. Simples instantes ou dias inteiros. Como estes."
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Foto: Miguel Sacramento
(um exclusivo para o Miniscente)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Cerveja e literatura - 59

e
“No reduzido número das coisas que me agradaram, e que soube bem, aquilo que por certo fiz melhor foi beber. Embora tenha lido muito, bebi mais. Escrevi muito menos do que a maior parte das pessoas que escrevem; mas bebi muito mais que a maioria das pessoas que bebem.” (…) “Vagueei bastante por várias cidades da Europa, nelas apreciando tudo quanto merecia sê-lo. O catálogo, em tal matéria, poderá ser vasto. Havia as cervejas de Inglaterra, onde se misturavam as fortes e as brandas na caneca; havia as enormes canecas de Munique; e as irlandesas; e a mais clássica, a cerveja checa de Pilzen; e o admirável barroquismo da Gueuze, nos arrabaldes de Bruxelas, quando ainda possuía sabor distinto em cada cervejaria artesanal e não suportava ver-se transportada para longe.”
e
(Guy Debord, Panegírico, tradução: Júlio Henriques; Edições Antígona, Lisboa, 1995, pp. 37/38; Participação: Carlos Vaz)

sábado, 15 de dezembro de 2007

Episódios e Meteoros - 61

e
(crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
(ver também no meu blogue de crónicas)
e
I Love Tagus
e
Vivemos tempos de correcção. São tempos que ilustram essencialmente a lei do menor esforço. Não se trata de ler uma receita e aplicá-la, como acontecia com o homem medieval diante dos Evangelhos ou com o homem ideológico diante das barbas de Marx.
Não, não se trata já propriamente de causas. A coisa dava reumático.
Trata-se antes de reproduzir ideias, factos e lógicas do mesmo modo com que se compram Ipods ou pastilhas elásticas: ao sabor do momento, do piscar de olhos e do gosto que todos, ou quase todos partilham. Ou partilharão.
O bom praticante do potencialmente correcto não precisa de passar muito tempo a pensar: basta-lhe assobiar ou aplaudir como qualquer outro adepto que se senta num estádio de futebol. Basta-lhe a estrela da sintonia, o estar em comum, o espírito de rima falsa ou certa, mas, de qualquer modo: a rima.
O bom praticante do potencialmente correcto não persuade, nem seduz, porque, à partida, aceita de bom grado ser um ser seduzido. Ainda que nem dê por isso. O que geralmente acontece. Basta-lhe estar na onda e por isso acaba por interiorizar e imitar o que está a dar, o que o envolve, o que o delicia. Porque a delícia é feita, não de ideias, mas das mãos que fantasmaticamente se tocam e geram afectos.
Sim, os afectos: é nesse palavrão que reside o combustível do bom praticante do potencialmente correcto. Uma natureza em forma de eflúvio que, à moda das musas inspiradoras, faz sobrepor os sentidos a qualquer abismo próprio e sem rede por baixo.
O bom praticante do potencialmente correcto não precisa de pensar. Torna-se em matéria apensa ao original: um attachment que reenvia os louros e que se recomenda, como se fosse um anjo do bem. Mas de um bem exclusivo.
O bom praticante do potencialmente correcto sorri à moda dos pixels: ora acende ora apaga, ora acende ora apaga, mas não diz quase nada. E acredita em territórios sacralizados, em fronteiras fixas e em coisas que não se podem dizer: uma crença totalitária disfarçada por uma rave de pinguins. Uma cena muito à frente. E pretensamente livre.
O bom praticante do potencialmente correcto não é um seguidista e muito menos um plagiador. Poderá até irritar-se, mas adora ser parte de um eco maior. Adora entoar tons entre tons de um acorde concertado. Adoraria tornar-se numa luzinha suave da linha de montagem de uma fábrica de cerveja.
Mas da Tagus, não. Dessa jamais.
Até porque, como dizia um famoso cronista (era mesmo cronista?): Ceci n´est pas une pipe.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Pré-publicações - 76

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Francisco José Viegas, Se me Comovesse o Amor, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2007.
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"SÃO AS MAIS ESTRANHAS ÁRVORES"
e
Para o Manuel Hermínio Monteiro.
e
"São as mais estranhas árvores, as que descem até às raízes;
pela última vez se visitam, antes que venha uma nuvem
ou que os animais te despertem a meio da noite. Estremeces
de tão pouco cuidado teres com essa maneira de os pássaros
e
se transformarem em fantasmas. A sombra poisa devagar
no teu ombro, como uma suspeita. Sofre-se muito: dois dias
depois lembra-se a passagem do tempo, a doçura das coisas,
como a da chuva a cair sobre os montes, a geometria
e
do mundo, as clareiras dos bosques, os muros das aldeias,
músicas que ouvimos antes. Teríamos sabido da morte de outra
maneira? A luz é muito diferente, nessa paisagem; escreveste-a
em silêncio, em cadernos que te chamam como uma despedida
e
até ao próximo Verão. Um relâmpago no céu, um rio ao fundo
da montanha: lugar tão perfeito como se de um geógrafo
se aproximassem os campos, os canais junto dos vales, as palavras
amadas. Teríamos sabido da morte de outra maneira?"
e
Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Pré-publicações - 75

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Tom Head (Org.), Conversas com Carl Sagan, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2007.
e
Pré-publicação:
e
"Num tempo em que tanto abunda o “nonsense” provocador, é bom encontrar um pouco de bom senso provocador. A reputação de Carl Sagan enquanto astrónomo brilhante com o dom da conversa informal data de 1965, quando apareceu A Vida Inteligente no Universo, livro escrito em co-autoria com o soviético Iosef Shklovskii. Sem nunca ter sido um “best-seller”, A Vida Inteligente rapidamente ficou conhecido como um dos mais excitantes livros de ciência não técnicos alguma vez escritos.
Num ímpeto de vitalidade que se seguiu ao seu trabalho no projecto Mariner (que colocou um satélite apetrechado de câmaras em órbita à volta de Saturno), Sagan escreveu ou colaborou noutros cinco livros, todos com lançamento agendado para este ano. A maioria versa a sua especialidade, a exobiologia, ciência emergente que se ocupa da vida para além da terra.
Com formação em astronomia, física, biologia e genética, Sagan vive com a mulher e três filhos em Ithaca, Nova Iorque, onde é director do Laboratório de Estudos Planetários da Universidade de Cornell. Foi nesse laboratório que, numa manhã de Janeiro polvilhada de neve, nos sentámos para conversar."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Cerveja e literatura - 58

e
"As lojas de bebidas de Harvard Square vendiam um uísque muito barato da Wilson, That's All, mas o meu pai não gostava de beber. O Oxford Grill, em Cambridge, costumava servir cerveja nuns copázios de vidro com a forma de baldes de conhaque, mas levando um galão cada um. Quem conseguisse beber esta quantidade num período de tempo reduzido, tinha direito a outra dose grátis. Mas o pai só lá ia beber uma cerveja normal depois das aulas, e ia logo a correr apanhar o comboio para Dairy, na North Station."
e
(John Irving, O Hotel New Hampshire, Distri Editora, Porto, 1984, p. 42; participação: Alberto Magalhães)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Cerveja e literatura - 57

e
"Quando o cônsul Buddenbrook e Siegismund Gosch voltaram à assembleia, a sala oferecia um aspecto mais confortável do que um quarto de hora antes. Estava iluminada por dois grandes candeeiros de parafina, colocados na mesa do presidente, e os deputados estavam juntos, sentados, de pé, enchendo de cerveja os grandes copos bebendo, e conversando barulhentamente, num ambiente de franca alegria. A sr.ª Suerkringel, viúva dedicada, viera em socorro dos seus hóspedes prisioneiros, oferecendo-lhes, com palavras eloquentes, uma refeiçãozinha, pois que o sítio podia durar muito tempo. Assim, aproveitara-se do distúrbio para vender grande quantidade da sua cerveja clara e bastante alcoólica. No momento da volta dos emissários, o criado, em mangas de camisa e com um sorriso benevolente, trazia nova carga de garrafas. Não obstante a hora avançada e apesar de ser tarde demais para se ocuparem da modificação da Constituição, nenhum dos deputados parecia disposto a interromper a reunião alegre, para voltar para casa. De qualquer forma, a hora do chá já passara…"
e
(Thomas Mann, Os Buddenbrook, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p. 139; Participação: Alberto Magalhães)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Cerveja e literatura - 56

e
“Mal entrei em casa, ao fim do dia, pressenti o desastre: andava no ar um cheiro enjoativo a refogado, à mistura com uma nuvem de cerveja. Corri para a cozinha, mas o mal já estava feito, o meu peito de borrego resfolegava ao lume, agitando-se num mar de cervejum e cebolório, arfando naquele caudal de água a ferver, perdendo-se, dessorando-se, minguando.”
e
(António Mega Ferreira, O Pretexto em A Expressão dos afectos, Assírio e Alvim, Lisboa, 2001, p.73)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Volta ao Mundo - 11

e
No passado sábado, o jornalista Fernando Madaíl (do DN) fez chegar aos media a volta ao mundo que está a ser protagonizada pela Clara Piçarra - neta do grande Piçarra do hino do SLB - e pelo Miguel Sacramento (e de que o Miniscente tem estado, em exclusivo, a editar as crónicas de viagem). Como se vê, nem sempre a blogosfera é senhora, a sós, de dotes aventurosos. E ainda bem que assim é. Há mais de três meses que se iniciou esta saga e para trás já ficou Madrid, Havana, Galapagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, a Polinésia e a Ilha da Páscoa. Neste momento, a Clara e o Miguel andam a contar carneiros na Nova Zelândia. Soube por eles, imagine-se, do texto da autoria de Fernando Madaíl. As voltas que o mundo dá!

Cerveja e literatura - 55

e
E eis como, na segunda página do romance de Ron McLarty, A Recordação da corrida (que acaba bem, juro!), o protagonista se apresenta:
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"Só que em 1990, com quarenta e três anos e cento e vinte e seis quilos, eu era supervisor na Goddard Toys, e passava os dias a verificar se os braços do boneco articulado SEAL Sam estavam montados com as palmas das mãos viradas para dentro, e as noites no Tick-Lap Lounge a beber cerveja e a ver programas desportivos na televisão. Não tinha namoradas. Nem, creio eu, amigos propriamente ditos. Tinha companheiros de copos. Bebíamos bem, como bons compinchas."
e
(Ron McLarty, A Recordação da corrida, tradução: Ana Falcão Bastos; Bizâncio, Lisboa, 2005, p.10)

domingo, 9 de dezembro de 2007

Justa indignação de Carmo da Rosa

e
"Indiferença ou desleixo?"
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"O recentemente falecido Augusto Willemsen foi, em 2006, convidado a participar numa tertúlia literária organizada pela Associação Portuguesa de Amesterdão. Durante o jantar, que sempre precede a palestra literária, a direcção da APA teve o cuidado de colocar August Willemsen estrategicamente em frente dos Srs. cônsul e vice-cônsul. Este cuidado de juntar as altas individualidades presentes revelou-se inútil: os representantes das autoridades portuguesas jamais tinham ouvido falar de August Willemsen.
e
Hoje, sexta-feira 7 de Dezembro, durante o funeral, muita gente esteve presente. A família, os amigos, pessoas de letras, portugueses e brasileiros residentes na Holanda, e mesmo o embaixador do Brasil.
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As autoridades portuguesas, continuam a ignorar o homem que deu Pessoa, Camões, Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, Dalton Trevisan a conhecer à língua neerlandesa.
e
Lista de portugueses envergonhados:
e
Carmo da Rosa"

sábado, 8 de dezembro de 2007

Episódios e Meteoros - 60

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(crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)
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M. S. Tavares e V. P. Valente: uma querela antiga
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A querela MST vs. VPV tem alimentado conversas entre calistas, professores, funcionários públicos, comerciantes e taxistas. A coisa significa bem mais do que um livro, umas crónicas ou rixas à frente da ginjinha do Rossio. Há nesta contenda dois Portugais, duas realezas e duas falas de personagem que se passeiam num palco bem mais apelativo do que o encenado no circo das letras. Entre quintas do Douro e o Gambrinus, entre o Alentejo e a St. Julian’s School, entre o altar do sucesso e a névoa de Oxford, entre a nostalgia e a excitação se passa todo este enredo. A percepção mais imediata do duelo revelar-se-á no tom com que MST e VPV idealizam o país.
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MST tem desmontado com algum rigor a camada que se foi instalando sobre o Portugal rural que existiu até ao final dos anos cinquenta. A crítica ecológica, num sentido alargado, comanda esta desmontagem que incide nos costumes, na apressada massificação e no labirinto da burocracia. Trata-se de uma crítica feita a partir de dentro, sem acidez forçada de voyeur. Há sardinhas assadas e algum sorriso no olhar crítico (por vezes tão contundente quanto folgazão) de MST. Este ponto de vista não é alheio à postura romântica do amante das coisas do campo, da caça, das virtudes do lúdico e sobretudo das viagens (de que herda o prazer de viandante iluminista).
e
VPV não desmonta, mas escarnece. Um pouco à moda dos expressionistas que não viam, mas tinham visões. Por vezes luminosas. Trata-se de um escárnio que é vizinho do desacato mais lúcido, ou tão-só arrasador. A crítica mordaz de VPV tem recorte frio (de quem sobrepõe a angústia à emoção) e coloca-se claramente de fora do objecto que visa: Portugal. Os adjectivos são exemplo dessa atitude: caracterizar como “péssimo” ou como “pavorosa mediocridade” é coisa normal e quase sempre em contraste com a imagem de estrangeirado (a “genuína universidade”) que tenta legitimar o verbo. Portugal é, para VPV, uma massa ignorante que carece por vezes de polícia e que – aqui estaríamos todos de acordo – não sabe tratar por tu a liberdade.
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Os mundos de MST e de VPV são, de facto, diversos. A noblesse e o desinibido legado do “gozo” e de sucesso de MST pouco têm que ver com a ideia de um menino a sós que fez nome rebelde a partir de um avô singular. Tutelas e cosmopolitismos distintos: a marca do desejado contra a augurada imagem de escritor maldito. Um e outro denotando problemas com os vestígios da velha ideia sacralizada de “Escritor” (“Como todos os historiadores sou um pouco escritor…”, diz VPV; os escritores acham-me um “intruso” e sou “alérgico ao espírito gregário da classe”, diz MST*).
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É verdade que o politicamente correcto se pode tornar subitamente numa forma de correcção. Sempre que o mundo é pequeno e toda a gente se conhece, o rabo do gato disfarça bem o arranhão. Talvez tenha sido por causa disso que VPV pediu a MST para escrever um livro sobre a sua passagem pela governação da cultura. Talvez tenha sido por causa disso que MST afirmou que apenas a agricultura e o próprio VPV deviam ser subsidiados em Portugal. Tal é a mútua admiração.
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Tal é, também, a disputa cega, secreta e já antiga entre um Portugal de amena e conciliada redenção e um Portugal “vencido” ou exausto de si mesmo. Uma querela antiga, pois então.
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*Cândida Pinto e Micael Pereira, Miguel Sousa Tavares “Agora gozo muito mais…”, Expresso, Única, nº 1825, 20/10/07, pp. 74-87; Ana Soromenho e Rui Gustavo, Vasco Pulido Valente “Pedi a Cavaco…”, Expresso, Única, nº 1829, 17/11/2007, pp. 108-122.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Crónica em directo da cimeira

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Não sabe se há-de dizer "preto", se há-de dizer "negro". Fica mal, fica bem. Fica bem, fica mal. Se diz "negro", faz figura de alarve, se diz "preto" é como se evitasse dizer "heterossexual" ou "masculinidade", uma e outra noções que o "putativamente correcto" vê como machismo puro. E nada mais. Sem qualquer margem de manobra. O máximo, diz ele (ou é uma ela?) era servirem uma ou duas Tagus, hoje à noite, no Parque das Nações. Ao jantar. A nova polícia dos costumes vinha logo a correr a dizer que era racismo. E homofobia. E a ASAE vinha logo a correr a dizer que aquilo fazia mal aos rins. Dos ditadores, dos tiranos, ou dos outros. Tanto faz. Quem me dera ter uma tenda! Mas a frase não é do Manuel Rui, aquele rapaz que surfava ondas no MPLA? Não. Porquê? Por uma única razão; porque descobriram petróleo no Beato. Sócrates sorri. E o Tejo. E tudo. Ali mesmo à mão.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Volta ao Mundo - 10

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Na sua volta ao mundo, a Clara e o Miguel já estão na Nova Zelândia. Tudo começou há cerca de três meses e... para trás já ficou Madrid, Havana, Galapagos, Quito, Buenos Aires, Ushuaia, a Polinésia e a Ilha da Páscoa. Depois da última crónica enviada (relativa aos fiordes da Patagónia chilena), é hoje a vez de:
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Rapa Nui (Ilha da Páscoa)
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"Corta o peixe em fatias bem finas, afoga-o em limão e alho, acrescenta gengibre, ervas aromáticas e não espera. Pega num pedaço e leva-o à boca. Eleva-se para essa mesma manhã. Revive aquele ínfimo instante em que pressente que o peixe vai morder o anzol. Cada músculo do seu corpo a preparar-se para a luta do animal. O mar. O tempo. O som. Antecedem o momento.
Mastiga o pedaço cru e olha para além da janela suja. O mar ao longe transforma-o no próprio peixe. Sente a dor, a força, o fundo. Mergulha para o fundo. Para o fundo de si próprio, para o outro lado da sobrevivência. Chegou ao mercado de Hanga Roa orgulhoso, com o peso do peixe nas duas mãos. Ambos sorriam. No outro prato da balança vinte bananas, um saco grande de legumes e uma grade de cervejas equilibram a semana.
Sai de casa. O prato abandonado em cima da mesa desconhece a história que serviu. Vazio. Como as ruas àquela hora da tarde. O cavalo espera-o com a mesma serenidade dos que sabem o caminho. Correm juntos, sem adereços ou separação, numa liberdade castanha que os leva até ao cimo do vulcão. Protege o seu Moai num abraço de pedra sólida. Não sente que adormece. Não sabe que sonha.
- Até amanhã - ouve.
E tem a certeza que haverá um dia seguinte."
(um exclusivo para o Miniscente)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

That´s a kind of teaser

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Amanhã, na minha habitual crónica do Expresso Online, o tema vai ser "Miguel Sousa Tavares e Vasco Pulido Valente: uma querela antiga". Ou seja: "entre um Portugal de amena e conciliada redenção e um Portugal “vencido” ou exausto de si mesmo. Uma querela antiga, pois então".

Cerveja e literatura - 54

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Quando Ralph descobre, preto no branco, a infidelidade de Marian, "agarra-a pelo ombro e empurra-a da sua frente", escreve Raymond Carver. Não escutando os perdões, sai depois de casa e o destino torna-se previsível. A umas dez páginas do final do romance, dir-se-á que, para tanto melodrama real, nada melhor do que uma cerveja no Blacke´s:
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"Ele teve que parar e encostar-se a um carro antes de caminhar. Dois casais em trajo de cerimónia vinham no passeio, em direcção a ele, e um dos homens vinha a contar uma história em voz alta. Os outros já estavam a rir. Ralph afastou-se do carro e atravessou a rua. Em poucos minutos chegou ao Blacke´s onde, nalgumas tardes, parava para beber uma cerveja com Dick Koening, antes de ir buscar os filhos ao infantário."
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(Raymond Carver, Queres fazer o favor de te calares, tradução: Carlos Santos; Teorema, Lisboa, 2004, pp. 266/267)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Pré-publicações - 74

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Miguel Real, A Morte de Portugal, Campo das Letras, Porto, 2007 (Dezembro).
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Pré-publicação:
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"(...) 1. ORIGEM EXEMPLAR: a figuração da origem exemplar de Portugal emerge na segunda metade do século XVI através da imagem de Viriato, herói impoluto, puro, virtuoso, soldado modelo, chefe guerreiro íntegro, homem simples, pastor humilde que se revolta contra a prepotência do ocupante estrangeiro, conduzindo os lusitanos a vitórias sucessivas – povo singelo e singular que, não obstante a sua fragilidade militar, é vencedor das legiões do império romano. Tão excelsa é a auréola de Viriato e tão recta e luminosa a sua conduta que só pela traição é derrotado. Concebida por Sá de Miranda e Camões, prolongada heroicamente por frei Bernardo de Brito e Brás Garcia Mascarenhas, a figura de Viriato sobressai no justo momento histórico do fim de 400 anos de ascensão vitoriosa de Portugal como povo exemplarmente católico, desde o conde D. Henrique a D. Manuel I, vencedor e expulsador de infiéis do território de Santa Maria, descobridor de mundos e reconvertor de pagãos. Deste modelo viriatino guarda cada português a imagem imaculada do português de antanho, patriarca da nação e exemplo ético de conduta, enraizado no terrunho natal, afeito à tradição, perfeito na humildade e na modéstia, tão sóbrio e decente quanto decoroso conveniente – é o complexo viriatino, que nos guiou em Ourique e em Aljubarrota, que orientou a conduta histórica de Egas Moniz, Nuno Álvares Pereira, Afonso de Albuquerque e D. João de Castro e moveu fundo a política nacional de Oliveira Salazar; e quando, dúplice, a pátria abandonou à sua sorte os mazombos pernambucanos do século XVII, João Fernandes Vieira, madeirense desventurado, filho abandonado de um fidalgo e de uma rameira preta do cais do Funchal, fez despertar o seu complexo de Viriato e, com catanas, zagaias e arcos, iniciou a guerra de guerrilha que, anos mais tarde, haveria de expulsar os holandeses do Brasil;
2. NAÇÃO SUPERIOR: da decadência do Império a partir de D. João III, do fracasso de Alcácer Quibir e da perda da independência nasce o assombro de nos sentirmos insignificantes depois de nos termos sabidos gigantes na descoberta da totalidade do mundo. Padre António Vieira, resgatando o providencialismo de Ourique e o milenarismo judaico de Bandarra, deu voz majestática a este cruzado sentimento de grandeza e pequenez, recusando testemunhar a nossa real insignificância europeia, dourando-nos o futuro com o regresso anunciado às glórias do passado, agora sob o divino nome de Quinto Império. Pela arte da palavra de padre António Vieira, Portugal, país de valor exíguo no século XVII, valendo apenas pelo legado dos territórios do Império, permanece desde então sebastianisticamente em permanente estado inquieto de vigília, aguardando o “despertar”, a “Hora!” pessoana, porque de novo cruzará os mares – agora do espírito e da cultura, falhados que foram os reais, tornando-se de novo grande – é o complexo vieirino, que nos determina a desejarmos mais do que nos pedem as forças e nos exigem as circunstâncias, pulsão social que orientou as caravelas portuguesas;
3. NAÇÃO INFERIOR: no final do século XVIII, após 250 anos de domínio exclusivo da Igreja Católica na formação da mentalidade colectiva portuguesa, arrefecido o afluxo de ouro e pedras preciosas do Brasil ao erário régio, Portugal reconheceu a sua pobreza intrínseca – o comércio urbano e as exportações nas mãos dos ingleses, o pão confeccionado com farinha branca inglesa, o carvão importado da Inglaterra, os trajes tecidos de seda de Lyon e de fazenda dos teares de Manchester, a louça provinda de Itália, as berlindas armadas em Paris, escolas públicas inexistentes, estradas reais inexistentes, hospitais públicos reduzidos ao de Hospital de Todos-os-Santos de Lisboa, que se incendiara em 1750. Magro, macérrimo era Portugal; gordo,gordérrimo o Estado de D. João V; magro, macérrimo era Portugal; gorda, gordérrima a Igreja de Portugal. Pela Europa culta ostentavam-se os espectáculos públicos nacionais como exemplo de barbárie e superstição: autos-de-fé, procissões penitenciais e touradas. O Marquês de Pombal reagiu a esta situação catastrófica, revolucionando o todo de Portugal – tesouro régio, educação, economia, urbanismo, política regalista –, assente na profunda convicção de que a Portugal, país em permanente estado de inferioridade civilizacional, nada lhe faltava para ser igual aos restantes caso se alterasse drasticamente o perfil das elites, insuflando-lhes um banho de Europa. Desde a revolução liberal de 1820, todos os ímpetos modernistas portugueses têm nascido deste complexo cultural que eleva a Europa a destino e sentido de Portugal – o complexo pombalino, hoje acefalamente política dominante do Estado português, que, como “bom aluno”, se põe na fila das estatísticas, subordinando a sua imensa valia cultural à mera e exclusiva valia dos indicadores económicos, gerando um notório sentimento de mal-estar e de inferioridade entre as actuais elites portuguesas, envergonhadas do povo rústico, bruto e arcaico que comandam, esquecendo-se de que o mesmo povo, em outros países da Europa central, governado por outras elites, atinge indicadores económicos valorosos e comportamentos educacionais distintos; (...)"
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

O paradoxo Chávez

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Perde as eleições, continua a governar e ainda consegue ser visto como democrata. Coisa única. Chapeau.
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P.S. - Entretanto, o Público, embora salvaguardando as conjecturas nas letras pequeninas (à moda dos seguros de vida), lá noticiou o "Sim" com todo o brado.

Astor

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Carla: fizeste-me lembrar uma noite, em Utreque, na Holanda. O Astor Piazzolla entrou no grande palco do Vredenburg e disse (mais ou menos isto): "Quando comecei a tocar ninguém percebeu o que eu fazia". Após uma pausa, continuou com o mesmo tom, impávido: "E hoje... toda a gente continua ainda por perceber". Num rompante, a música calou o riso e o forte oceano de palmas. Foi em 1985, creio. Tinha acabado de chegar de Veneza e era tio há menos de um mês. É verdade, tudo isto bate certo. E eu volto ao teu belo Bomba para ouvir o Astor mais uma vez. Emocionado.

Parabéns!

Atrasado como sempre, mas não esqueço os parabéns ao Mar Salgado, à deliciosa Rititi e a todo o 31 da Armada.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Episódios e Meteoros - 59

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(crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
(ver também no meu blogue de crónicas)
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O sagrado: uma máscara de nós próprios
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Foi Ducrot quem escreveu que o fenómeno religioso não se poderia explicar, caso “a própria língua não tornasse possível a fala de alguém ser simplesmente a fala de outrem”1.
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Este ponto de vista simplista, mas interessante, põe em paralelo a voz do profeta que transmitia a voz de deus e o encantamento digital das mil mediações que nos repõem, hoje, o mundo na nossa sala de estar. Há em ambos os casos uma distância entre a voz que se ouve e uma outra voz que se oculta.
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Mas eu não creio, sinceramente, que o fascínio do sagrado esteja nesse jogo – por mais sofisticado que seja – entre bastidores e boca de cena. O sagrado não é, pois, apenas uma forma dramatúrgica de conforto.
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O que nos atrai ao sagrado é o mesmo que faz o homem pensar. Nós pensamos com imagens que se reproduzem como cerejas (Damásio, em O Sentimento de Si, prefere falar de um fluxo de imagens que se move “para a frente no tempo, depressa ou devagar, de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança não apenas numa sequência mas em várias”2). Apesar de não nos podermos comparar a um catavento, andamos, por vezes, lá perto: passeamo-nos na rua, entramos num café, guiamos um carro e, ao lado da concentração, a nossa cabeça é um moinho sempre a rodar, sempre em movimento.
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O que é que esta turbulência da nossa mente tem a ver com o sagrado? É simples. O sagrado baseia-se no mistério. E há uma vantagem no mistério que é, ao mesmo tempo, também, a sua essência. É que o mistério é como uma sombra em torno da qual é possível construir ilimitados percursos. Não se trata de explicar por que razão essa sombra existe, mas de a contornar, de a percorrer, de a envolver, porventura de a amar. Grande parte da existência e do discurso dos homens faz-se a partir dessa circum-navegação que nunca mais acaba. Um ritual de imagens, ritos, palavras e gestos que se reproduz, ao longo do tempo, apenas para sublinhar a importância da sombra.
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No fundo, o labirinto do culto é muito semelhante ao labirinto com que as imagens encenam a consciência. O cinema, quando foi inventado, também trouxe para o lado de fora da nossa cabeça esta luta livre entre a montagem e o modo desabrido com que as imagens se podem conotar ou reproduzir, na nossa frente, sem cessar. O cinema é, sob o ponto de vista físico, como substância, uma verdadeira sombra. Melhor: sombra e luz que se alternam. E que, com o seu movimento, nos mobilizam a pulsação mais vital.
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O sagrado é, ao fim e ao cabo, um modo confortável de imitar e plagiar a nossa mente, mas é também a radiografia permanente do seu funcionamento. É por isso que o sagrado e o homem se confundem. O cinema foi, ao longo do seu período pioneiro, tal como o sagrado o foi no tempo das “Escrituras”, uma ilustração fantástica e fantasmática deste desejo profundo de brindarmos ao universo com uma máscara de nós próprios.
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1-Enunciação em Enciclopédia Einaudi, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984/II, pp. 387.
2-O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, Lisboa, 2000, p.362.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Voava sobre as palavras - II

Bert Verhoeff
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No post de baixo sucedem-se os depoimentos sobre a morte de August Willemsen: José M. Rodrigues, Rui Mota, Carmo da Rosa e Fernando Venâncio.