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sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Godard e o baú do natal

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Um dos meus presentes de natal veio do senhor Godard. Salvo seja. Mas não deixa de ser verdade que as História(s) do cinema, agora editadas por cá, são intensas e sobrepõem fragmentos de uma arte maior. Desde que emergiu do pasmo fotográfico até se tornar na reinvenção da mente, invadida por sonhos de carne e por vozes de sombra. Uma fantasmagoria apetecível, de massas. Como diz Godard, a certa altura, nada no cinema se funda numa realidade histórica. Tal como o cristianismo, o cinema cria uma narrativa, concede-a ao público e diz: acredita. Crê! E assim que os deuses se colocaram em fuga, entre as proezas variadas de Muybridge, Nietzsche, Freud ou Proust, eis que um novo deus singrou na alma das multidões, das revoluções e sobretudo das solidões. Uma arte maior que terá perdido a inocência por causa de duas guerras brutais e que não sucumbiu diante da roda viva das variedades de estúdio. Uma arte maior e, porventura, nem sequer uma arte. Um lapso. E, porventura, nem mesmo uma técnica, como sublinha o espesso Godard, omnipresente narrador desta sua longa saga que se vai deixando ver entre uma nuvem doméstica e permanente de tabaco. Augúrios muito actuais. Não sei se vos aconselho o DVD, sinceramente. Não é coisa que faça moda, hoje em dia, e muito menos aqui na turbulência feérica e amiúde vazia da blogosfera. Nestes dias de natal em que o mundo se imobiliza, vi, por acaso, o Tolentino poeta no ecrã da televisão. Dizia, com razão, que deixámos todos de perceber como se habita este ser que é o homem. Preenchimentos ininterruptos: é disso que é, realmente, feita a hemorragia televisiva. E era a isso que Tolentino se referia. Ao invés, o cinema, aquele cinema que Godard persiste em ver como sobrevivente a todas as mortes, como ressurreição quase pura, terá - ou teria - sido, possivelmente, a última arte a dar ao homem a sugestão do seu verdadeiro habitat, das suas sombras, dos seus pasmos e das suas figuras mais virtuosas. Em suma: um grande presente de natal retirado do minúsculo baú da imprevisibilidade (embora a minha capacidade de exaltação, nestes casos ligados ao sublime, já não seja o que foi há uns vinte anos).