Horas mortas
Preferia que a hora se tivesse mantido. Detesto ver a luz do dia a eclipsar-se a meio da tarde. Já gostei, mas isso era noutros tempos. Quando morava no norte da Europa e tinha sentido ver a noite crescer no corpo do dia sobre uma bicicleta e em luta contra a glacialidade do horizonte.
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Campeonato da língua portuguesa
"Tit Con 24 FixoQua Nondaciene Macte,”
Este é o título do artigo, hoje publicado na edição on-line do Público, que dá conta do protocolo ontem assinado entre a Câmara Municipal da Azambuja e a Companhia de Dança Contemporânea de Sintra.
"Tit Con 24 FixoQua Nondaciene Macte,”
Este é o título do artigo, hoje publicado na edição on-line do Público, que dá conta do protocolo ontem assinado entre a Câmara Municipal da Azambuja e a Companhia de Dança Contemporânea de Sintra.
A Aparição (actualizado a 31/10/2004)
Vivemos num mundo subitamente reordenado, cujas ocorrências-chave se foram avolumando, com uma celeridade e uma novidade espantosas, nos últimos três anos. É neste contexto que a figura tutelar do novo terrorismo global - essa efígie desaparecida e aparentemente sempre perseguida - reapareceu de corpo inteiro no ecrã da al-Jazeera. Na telecracia global, são as imagens que definem as imagens e, quando se vota, é também, em grande parte, em imagens que se vota.
Nesta voragem mediática que funciona como uma bola de neve gigante, o grande protagonista do mandato narrado por George W. Bush, Osama bin Laden, passou não só a dominar de ponta a ponta o debate entre democratas e republicanos, como passou também a ser a imagem de marca de todo o ambiente de real crispação eleitoral norte-americana.
Para além desse facto, já de si assinalável num panorama de sufrágio democrático, a aparição - e é de uma aparição que se trata - de Osama bin Laden foi ainda claramente calculada e calculista, já que foi feita a algumas dezenas de horas das eleições norte-americanas e, ao contrário do habitual, foi menos panfletária e apontou sobretudo para alvos políticos, dir-se-ia cirúrgicos.
Creio, nesta medida, que a intervenção do terrorista saudita serviu quatro objectivos principais muito bem pensados, a saber:
1 - assumir-se como a referência e o agente principal a que grande superpotência mundial jamais poderá escapar, reatando assim o tema do medo e da insegurança;
2 - afirmar que o 11 de Setembro não foi um evento, mas antes uma guerra que está e estará ainda em curso durante muito tempo;
3 - sublinhar o desrespeito pelo efeito democrático da eleição, tentando desmoralizar o ânimo do eleitorado norte-americano;
4 - misturar a perversão do confronto religioso com uma ideia casuística de “liberdade”, tentando deste modo criar confusão deliberada nos momentos vitais anteriores à votação (e cujas expectativas, como se sabe, estão em aberto).
De qualquer modo, fica por determinar - no dia em que escrevo este post e mesmo após a difusão dos resultados - qual terá sido o impacto real nas urnas desta inesperada aparição.
Certo é que, independentemente do vencedor das eleições norte-americanas, não se deverão verificar mudanças significativas no plano da política externa, tendo em conta os factos com que os EUA e o Ocidente em geral se defrontam.
Já no plano interno, ponderando o cenário de alguma retoma a curto prazo, é bem possível que uma ou outra reorientação, sobretudo de natureza simbólica e pontual (relativa à fiscalidade ou à saúde, por exemplo), possa vir a ter lugar.
Para além destas previsões algo prospectivas, penso que, longe da paixão dos eleitores norte-americanos e com alguma racionalidade, a eventual saída de cena de George W. Bush poderia somar pontos positivos. Por três razões principais:
1 - os EUA ganhariam em marketing o que perderam com Bush durante estes longos quatro anos (a expressão “marketing” releva aqui uma economia metafórica que vale pela inadequação e até falência de uma dada entourage política de Bush);
2 - sem Bush, as esquerdas mais cristalizadas do planeta e certas direitas europeias de feição continental deixariam de ter o desejado bode expiatório que lhes permite exorcizar as contra-culturas que hoje já não têm grande razão de ser. Kerry, não por méritos próprios, contribuiria assim para uma espaço público mundial mais aberto e menos mono-dirigido a alvos, por vezes, fantasmáticos.
3 - sem Bush, os EUA e o Ocidente em geral estariam em condições de reconfigurar um cenário mais sereno visando redefinir uma visão e uma actuação mais centradas na nova realidade criada há três anos, depois do evento nodal que foi o 09/11. A visão a quente, compreensivelmente imediatista, alarmista, reactiva (e excessivamente unilateralista) poderia vir, a pouco e pouco, a ser substituída por uma gestão política mais concertada e, portanto, adequada à nova guerra mundial que, de facto, está em curso.
Acrescentando (31/10/2004):
Independentemente do que acabo de escrever, devo acrescentar que não partilho das visões turvas e algo neuróticas que vêem numa possível vitória de George W. Bush a entrada da humanidade num temível túnel negro.
A realidade norte-americana situa-se entre a síndrome pós-09/11 e a necessidade de um vínculo que associe confiança a autoridade. Neste âmbito, Kerry tem demonstrado uma tendência excessivamente relativista e tem sentido, por outro lado, uma deficiente margem de manobra para afirmar um espaço próprio que fosse capaz de ligar um devir positivo na política interna à necessária determinação na política externa.
Creio mesmo que o impacto da aparição de Osama bin Laden pode ter radicalizado a síndrome do terrorismo apocalíptico que se disseminou nos EUA com uma natureza muito própria e, na maioria dos casos, bastante estranha aos sentimentos europeus, sobretudo às esquerdas menos lúcidas e a certas direitas fechadas e nacionalistas. Esta radicalização, embora de consequências imprevisíveis, com acima já fiz notar, acaba, em última instância, por reverter mais para o lado de Bush tendo em conta a ênfase dada à ameaça, ao temor e à violência gratuita.
Mas tudo pode acontecer.
Vivemos num mundo subitamente reordenado, cujas ocorrências-chave se foram avolumando, com uma celeridade e uma novidade espantosas, nos últimos três anos. É neste contexto que a figura tutelar do novo terrorismo global - essa efígie desaparecida e aparentemente sempre perseguida - reapareceu de corpo inteiro no ecrã da al-Jazeera. Na telecracia global, são as imagens que definem as imagens e, quando se vota, é também, em grande parte, em imagens que se vota.
Nesta voragem mediática que funciona como uma bola de neve gigante, o grande protagonista do mandato narrado por George W. Bush, Osama bin Laden, passou não só a dominar de ponta a ponta o debate entre democratas e republicanos, como passou também a ser a imagem de marca de todo o ambiente de real crispação eleitoral norte-americana.
Para além desse facto, já de si assinalável num panorama de sufrágio democrático, a aparição - e é de uma aparição que se trata - de Osama bin Laden foi ainda claramente calculada e calculista, já que foi feita a algumas dezenas de horas das eleições norte-americanas e, ao contrário do habitual, foi menos panfletária e apontou sobretudo para alvos políticos, dir-se-ia cirúrgicos.
Creio, nesta medida, que a intervenção do terrorista saudita serviu quatro objectivos principais muito bem pensados, a saber:
1 - assumir-se como a referência e o agente principal a que grande superpotência mundial jamais poderá escapar, reatando assim o tema do medo e da insegurança;
2 - afirmar que o 11 de Setembro não foi um evento, mas antes uma guerra que está e estará ainda em curso durante muito tempo;
3 - sublinhar o desrespeito pelo efeito democrático da eleição, tentando desmoralizar o ânimo do eleitorado norte-americano;
4 - misturar a perversão do confronto religioso com uma ideia casuística de “liberdade”, tentando deste modo criar confusão deliberada nos momentos vitais anteriores à votação (e cujas expectativas, como se sabe, estão em aberto).
De qualquer modo, fica por determinar - no dia em que escrevo este post e mesmo após a difusão dos resultados - qual terá sido o impacto real nas urnas desta inesperada aparição.
Certo é que, independentemente do vencedor das eleições norte-americanas, não se deverão verificar mudanças significativas no plano da política externa, tendo em conta os factos com que os EUA e o Ocidente em geral se defrontam.
Já no plano interno, ponderando o cenário de alguma retoma a curto prazo, é bem possível que uma ou outra reorientação, sobretudo de natureza simbólica e pontual (relativa à fiscalidade ou à saúde, por exemplo), possa vir a ter lugar.
Para além destas previsões algo prospectivas, penso que, longe da paixão dos eleitores norte-americanos e com alguma racionalidade, a eventual saída de cena de George W. Bush poderia somar pontos positivos. Por três razões principais:
1 - os EUA ganhariam em marketing o que perderam com Bush durante estes longos quatro anos (a expressão “marketing” releva aqui uma economia metafórica que vale pela inadequação e até falência de uma dada entourage política de Bush);
2 - sem Bush, as esquerdas mais cristalizadas do planeta e certas direitas europeias de feição continental deixariam de ter o desejado bode expiatório que lhes permite exorcizar as contra-culturas que hoje já não têm grande razão de ser. Kerry, não por méritos próprios, contribuiria assim para uma espaço público mundial mais aberto e menos mono-dirigido a alvos, por vezes, fantasmáticos.
3 - sem Bush, os EUA e o Ocidente em geral estariam em condições de reconfigurar um cenário mais sereno visando redefinir uma visão e uma actuação mais centradas na nova realidade criada há três anos, depois do evento nodal que foi o 09/11. A visão a quente, compreensivelmente imediatista, alarmista, reactiva (e excessivamente unilateralista) poderia vir, a pouco e pouco, a ser substituída por uma gestão política mais concertada e, portanto, adequada à nova guerra mundial que, de facto, está em curso.
Acrescentando (31/10/2004):
Independentemente do que acabo de escrever, devo acrescentar que não partilho das visões turvas e algo neuróticas que vêem numa possível vitória de George W. Bush a entrada da humanidade num temível túnel negro.
A realidade norte-americana situa-se entre a síndrome pós-09/11 e a necessidade de um vínculo que associe confiança a autoridade. Neste âmbito, Kerry tem demonstrado uma tendência excessivamente relativista e tem sentido, por outro lado, uma deficiente margem de manobra para afirmar um espaço próprio que fosse capaz de ligar um devir positivo na política interna à necessária determinação na política externa.
Creio mesmo que o impacto da aparição de Osama bin Laden pode ter radicalizado a síndrome do terrorismo apocalíptico que se disseminou nos EUA com uma natureza muito própria e, na maioria dos casos, bastante estranha aos sentimentos europeus, sobretudo às esquerdas menos lúcidas e a certas direitas fechadas e nacionalistas. Esta radicalização, embora de consequências imprevisíveis, com acima já fiz notar, acaba, em última instância, por reverter mais para o lado de Bush tendo em conta a ênfase dada à ameaça, ao temor e à violência gratuita.
Mas tudo pode acontecer.
sábado, 30 de outubro de 2004
A palavra da semana
E… a palavra desta semana é assapar: “agora já podes assapar por todo o lado” (mensagem de correio electrónico da sapo, 26/10/2004, 16.52 h). Nas passadas semanas, relembro, as palavras premiadas foram, respectivamente, “bilhética” e “domótica”. Esta chancela do Miniscente ainda vai ficar famosa entre a equipa que vier a reelaborar, no Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa, a próxima edição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (já lá vão três anos sobre a primeira edição).
E… a palavra desta semana é assapar: “agora já podes assapar por todo o lado” (mensagem de correio electrónico da sapo, 26/10/2004, 16.52 h). Nas passadas semanas, relembro, as palavras premiadas foram, respectivamente, “bilhética” e “domótica”. Esta chancela do Miniscente ainda vai ficar famosa entre a equipa que vier a reelaborar, no Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa, a próxima edição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (já lá vão três anos sobre a primeira edição).
sexta-feira, 29 de outubro de 2004
De Roma para o espaço público
Para o que der e vier, a Constituição Europeia está, a partir de hoje, on-line. É clicar e ler. E dizer de sua justiça. O caminho até 2007, presumível data de entrada em vigor da Constituição, passa ainda pela ratificação democrática - referendária no nosso caso - dos vinte e cinco países que hoje (historicamente) a assinaram.
Para o que der e vier, a Constituição Europeia está, a partir de hoje, on-line. É clicar e ler. E dizer de sua justiça. O caminho até 2007, presumível data de entrada em vigor da Constituição, passa ainda pela ratificação democrática - referendária no nosso caso - dos vinte e cinco países que hoje (historicamente) a assinaram.
Sorriso da noite
A cor do fogo e os vidros quase embaciados. O livro a meio e a macieira a perder as folhas no pátio. Restam castanhas, tâmaras e a lua tão distante, apenas pressentida. Dir-se-ia que a realidade é, neste momento, algo exterior e anterior ao que descrevo, mas, também, motivo singular de tudo o que entrevejo.
A cor do fogo e os vidros quase embaciados. O livro a meio e a macieira a perder as folhas no pátio. Restam castanhas, tâmaras e a lua tão distante, apenas pressentida. Dir-se-ia que a realidade é, neste momento, algo exterior e anterior ao que descrevo, mas, também, motivo singular de tudo o que entrevejo.
Muitos parabéns!
E o Rua da Judiaria fez um ano!
Da Judiaria de Évora envio um imenso abraço (com um dia de atraso por ter estado em viagem).
E o Rua da Judiaria fez um ano!
Da Judiaria de Évora envio um imenso abraço (com um dia de atraso por ter estado em viagem).
quinta-feira, 28 de outubro de 2004
quarta-feira, 27 de outubro de 2004
Falta de estaleca ou efígie de gesta?
Clara Ferreira Alves amuou apenas com uns tantos boatos. E por isso recusou dirigir o DN. Por causa do diz-se diz-se. Numa sociedade aberta, a negatividade recai tanto sobre quem emite rumores e recorre ao anonimato, como sobre quem age em função deles, seja por reacção, seja mesmo por inibição. Fica ainda por explicar a conversa que Clara Ferraira Alves terá mantido com Bettencourt Resendes e, da segunda vez, também, com o próprio orgulho da corporação jornalística, Luís Delgado. Vivemos num tempo em que as conversas devidamente noticiadas e ululantes são sempre conversas que necessariamente ficam por esclarecer. Vamos agora ver se a caricata AACS se proporá receber a diva da Casa Fernando Pessoa mais os dois ilustes comentadores da nossa pátria viva. Estou ansioso por saber, quase já sinto um prenúncio de taquicardia.
Clara Ferreira Alves amuou apenas com uns tantos boatos. E por isso recusou dirigir o DN. Por causa do diz-se diz-se. Numa sociedade aberta, a negatividade recai tanto sobre quem emite rumores e recorre ao anonimato, como sobre quem age em função deles, seja por reacção, seja mesmo por inibição. Fica ainda por explicar a conversa que Clara Ferraira Alves terá mantido com Bettencourt Resendes e, da segunda vez, também, com o próprio orgulho da corporação jornalística, Luís Delgado. Vivemos num tempo em que as conversas devidamente noticiadas e ululantes são sempre conversas que necessariamente ficam por esclarecer. Vamos agora ver se a caricata AACS se proporá receber a diva da Casa Fernando Pessoa mais os dois ilustes comentadores da nossa pátria viva. Estou ansioso por saber, quase já sinto um prenúncio de taquicardia.
terça-feira, 26 de outubro de 2004
Ilusionismos - 3
O fim, mais do que um ponto absoluto, foi quase sempre representado como um tornar-se em qualquer coisa. As últimas etapas das escatologias e das ideologias consubstanciavam a própria perfeição como uma espécie de relato de outra vida que se auto-regularia, dilatando, de certa forma, o tempo efémero e sempre conturbado do presente.
O fim, mais do que um ponto absoluto, foi quase sempre representado como um tornar-se em qualquer coisa. As últimas etapas das escatologias e das ideologias consubstanciavam a própria perfeição como uma espécie de relato de outra vida que se auto-regularia, dilatando, de certa forma, o tempo efémero e sempre conturbado do presente.
Ilusionismos- 1
A imaginação humana tem uma congénita tentação e uma simultânea dificuldade em definir o que é, afinal, o “fim dos tempos”. Creio que Martin Heidegger e Jorge Luis Borges dialogaram um com o outro, como poucos - embora involuntariamente -, acerca deste insigne tema. O primeiro, ao afirmar que a “finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo à finitude”; o segundo, ao afirmar, complementarmente, que “nenhuma das eternidades que os homens planearam” (...) “é uma agregação mecânica do passado, do presente e do futuro. É uma coisa bem mais simples e mais mágica: é a simultaneidade de todos esses tempos.”
A imaginação humana tem uma congénita tentação e uma simultânea dificuldade em definir o que é, afinal, o “fim dos tempos”. Creio que Martin Heidegger e Jorge Luis Borges dialogaram um com o outro, como poucos - embora involuntariamente -, acerca deste insigne tema. O primeiro, ao afirmar que a “finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo à finitude”; o segundo, ao afirmar, complementarmente, que “nenhuma das eternidades que os homens planearam” (...) “é uma agregação mecânica do passado, do presente e do futuro. É uma coisa bem mais simples e mais mágica: é a simultaneidade de todos esses tempos.”
segunda-feira, 25 de outubro de 2004
Do acting-out mediático que nos gera
O tempo real implica a proximidade quase instantânea entre o evento e a sua virtualidade generativa. Quer isto dizer que o evento está lá, mas é, ao mesmo tempo, transposto ficcionalmente, como um duplo, para uma cadeia aparentemente integrada e sem fim. Esta propagação global de imagens aceleradas é, ela mesma, o próprio universo meta-real que simula governar-nos, do mesmo modo que, para os medievalistas platónicos, os universais precediam o real de acordo com a famosa fórmula, aqui referida há dias: universalia sunt ante res. O espectro do antigo Deus cruza-se, deste modo, com o locus ocupado, hoje em dia, pelo nosso - chamemos-lhe - ‘Existente F’, ou seja, por essa fissura espantosa que a instantaneidade tecnológica provocou para se tornar, perante a nossa ingenuidade massificada, numa espécie de fim em si mesma. Tudo isto se passou demasiado rapidamente, sem tempo para grandes acomodamentos, como se tivéssemos atravessado, sem dar por isso, uma ponte entre o sentido imanente da história e o sentido imanente da instantaneidade. (Desilusionismos).
O tempo real implica a proximidade quase instantânea entre o evento e a sua virtualidade generativa. Quer isto dizer que o evento está lá, mas é, ao mesmo tempo, transposto ficcionalmente, como um duplo, para uma cadeia aparentemente integrada e sem fim. Esta propagação global de imagens aceleradas é, ela mesma, o próprio universo meta-real que simula governar-nos, do mesmo modo que, para os medievalistas platónicos, os universais precediam o real de acordo com a famosa fórmula, aqui referida há dias: universalia sunt ante res. O espectro do antigo Deus cruza-se, deste modo, com o locus ocupado, hoje em dia, pelo nosso - chamemos-lhe - ‘Existente F’, ou seja, por essa fissura espantosa que a instantaneidade tecnológica provocou para se tornar, perante a nossa ingenuidade massificada, numa espécie de fim em si mesma. Tudo isto se passou demasiado rapidamente, sem tempo para grandes acomodamentos, como se tivéssemos atravessado, sem dar por isso, uma ponte entre o sentido imanente da história e o sentido imanente da instantaneidade. (Desilusionismos).
domingo, 24 de outubro de 2004
Campeonato da Língua Portuguesa
"Entrevista com Carlos Cruz: ÌA InvestigaÁ,,o N,,o Fez o Seu Trabalho, e o Que Fez, Fez Malî
Reafirma que n,,o È pedÛfilo. Faz violentas acusaÁ^es TVI, ìCorreio da Manh,,î e ìExpressoî, aos investigadores e a Souto Moura. Admite vir a sair de Portugal no fim do processo. Mas nem quer encarar a hipÛtese de ser condenado. Porque, apesar de tudo, mantÈm ìuma reserva de confianÁaî na JustiÁa."
Assim se expressa cristalinamente o jornal Público de hoje, na capa da sua edição on-line. Para que conste.
"Entrevista com Carlos Cruz: ÌA InvestigaÁ,,o N,,o Fez o Seu Trabalho, e o Que Fez, Fez Malî
Reafirma que n,,o È pedÛfilo. Faz violentas acusaÁ^es TVI, ìCorreio da Manh,,î e ìExpressoî, aos investigadores e a Souto Moura. Admite vir a sair de Portugal no fim do processo. Mas nem quer encarar a hipÛtese de ser condenado. Porque, apesar de tudo, mantÈm ìuma reserva de confianÁaî na JustiÁa."
Assim se expressa cristalinamente o jornal Público de hoje, na capa da sua edição on-line. Para que conste.
sábado, 23 de outubro de 2004
As utopias, os lamentos e as desmontagens
Ao longo do Antigo Testamento, sobretudo a partir dos Textos Proféticos, o aprofundamento de um sentido escatológico da vida devolveu à imaginação humana um futuro perfectível (situado no além). Sabe-se que nem sempre, essa perspectiva de futuro se adequou ao vivido e ao quotidiano. É por isso que muita da literatura profética, a partir do séc. VI a.C., toda a literatura apocalíptica (até ao séc. II d.C.) e uma parte significativa da posterior produção literária profética (e da sua práxis) revelavam uma impaciência imensa, querendo ver, no agora-aqui terreno, cumpridas todas as prescrições prometidas. Outros “grandes códigos” totalizantes - a expressão é do já clássico N. Frye - se seguiram ao escatológico, no limiar ou mesmo já no seio da modernidade, libertando a imaginação humana no sentido da enunciação de um nenhures absoluto e prefiguradamente liberto do divino (caso das utopias) e, por outro lado, da construção de programas sintacticamente arrumados e hierarquizados (caso das ideologias). No âmbito destes novos grandes códigos, onde, de modo evolucionista e monocentrado, a “história” continua a ser revista como um todo, dotado de uma certa organização e coerência, a mesma impaciência que exige o cumprimento imediato dos horizontes perfectíveis prometidos (agora já pela pretensa cientificidade ideológica e não pela divindade) continua a manifestar-se. É neste contexto de exigências versus promessas, que corresponde a uma continuidade ocidental muito antiga, como se vê, que as lamentações de Soares e as de uma certa esquerda que sentiu uma súbita e inexplicável perda de pé agora se manifestam. Trata-se de um pathos melancólico e ressentido que não entendeu as viragens que ocorreram no nosso planeta, a Ocidente, nos últimos vinte anos.
No que consistiram essas mudanças?
Basicamente, após meados dos anos oitenta, pode dizer-se que, a pouco e pouco, há dois elementos preponderantes que determinam esta viragem: por um lado, a falência dos grandes códigos totalizantes, enquanto factor explicativo e mobilizador das sociedades, e, por outro lado, a culminante entrada em cena de novos modos de interacção tecnológicos, de uma novíssima antropologia do ciberespaço, da aceleração do instantanismo telecrática, assim como da sobreposição do acentrado sobre o centrado, nas relações entre auditórios e emissores, quer nas linguagens, quer também nas regras que as significam. O que basicamente passou a dominar a época em que vivemos hoje é a ficcionalidade da experiência corporizada pelos média, as áreas de propagação ciberespacial, o agir livre do sujeito impelido por um desejo instantanista, a compulsão interactiva circundante face ao sujeito e, por fim, a propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico. A instantaneidade, neste novo quadro, deixa efectivamente de ser o móbil através do qual se reivindicaria um horizonte salvífico, para passar a ser o elemento central de um sistema de vida que recoloca na arena do presente uma espécie de consecução plena do agir humano, ou seja, do preenchimento do seu próprio ser. Do mesmo modo, a instantaneidade deixa de ser escrava da fractura entre presente e futuro longínquo e passa a refluir em direcção ao presente, arrastando consigo a imaginação exilada desse mesmo futuro. Neste contexto, o espaço público e o significado das exigências e do nível das promessas alteraram-se radicalmente. Facto que certa esquerda ainda não compreendeu. Mas não só.
Ao longo do Antigo Testamento, sobretudo a partir dos Textos Proféticos, o aprofundamento de um sentido escatológico da vida devolveu à imaginação humana um futuro perfectível (situado no além). Sabe-se que nem sempre, essa perspectiva de futuro se adequou ao vivido e ao quotidiano. É por isso que muita da literatura profética, a partir do séc. VI a.C., toda a literatura apocalíptica (até ao séc. II d.C.) e uma parte significativa da posterior produção literária profética (e da sua práxis) revelavam uma impaciência imensa, querendo ver, no agora-aqui terreno, cumpridas todas as prescrições prometidas. Outros “grandes códigos” totalizantes - a expressão é do já clássico N. Frye - se seguiram ao escatológico, no limiar ou mesmo já no seio da modernidade, libertando a imaginação humana no sentido da enunciação de um nenhures absoluto e prefiguradamente liberto do divino (caso das utopias) e, por outro lado, da construção de programas sintacticamente arrumados e hierarquizados (caso das ideologias). No âmbito destes novos grandes códigos, onde, de modo evolucionista e monocentrado, a “história” continua a ser revista como um todo, dotado de uma certa organização e coerência, a mesma impaciência que exige o cumprimento imediato dos horizontes perfectíveis prometidos (agora já pela pretensa cientificidade ideológica e não pela divindade) continua a manifestar-se. É neste contexto de exigências versus promessas, que corresponde a uma continuidade ocidental muito antiga, como se vê, que as lamentações de Soares e as de uma certa esquerda que sentiu uma súbita e inexplicável perda de pé agora se manifestam. Trata-se de um pathos melancólico e ressentido que não entendeu as viragens que ocorreram no nosso planeta, a Ocidente, nos últimos vinte anos.
No que consistiram essas mudanças?
Basicamente, após meados dos anos oitenta, pode dizer-se que, a pouco e pouco, há dois elementos preponderantes que determinam esta viragem: por um lado, a falência dos grandes códigos totalizantes, enquanto factor explicativo e mobilizador das sociedades, e, por outro lado, a culminante entrada em cena de novos modos de interacção tecnológicos, de uma novíssima antropologia do ciberespaço, da aceleração do instantanismo telecrática, assim como da sobreposição do acentrado sobre o centrado, nas relações entre auditórios e emissores, quer nas linguagens, quer também nas regras que as significam. O que basicamente passou a dominar a época em que vivemos hoje é a ficcionalidade da experiência corporizada pelos média, as áreas de propagação ciberespacial, o agir livre do sujeito impelido por um desejo instantanista, a compulsão interactiva circundante face ao sujeito e, por fim, a propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico. A instantaneidade, neste novo quadro, deixa efectivamente de ser o móbil através do qual se reivindicaria um horizonte salvífico, para passar a ser o elemento central de um sistema de vida que recoloca na arena do presente uma espécie de consecução plena do agir humano, ou seja, do preenchimento do seu próprio ser. Do mesmo modo, a instantaneidade deixa de ser escrava da fractura entre presente e futuro longínquo e passa a refluir em direcção ao presente, arrastando consigo a imaginação exilada desse mesmo futuro. Neste contexto, o espaço público e o significado das exigências e do nível das promessas alteraram-se radicalmente. Facto que certa esquerda ainda não compreendeu. Mas não só.
Campeonato da Língua Portuguesa
"TRAP diz k há jogad mt sobrecarreg com jogos e k iriam descansar! Ñ vejo nada disso.Ele é kem sabe, mt bem,mas tinha condições de tirar Petit, k tem sido um muro de trab no meio campo e frente, e foi o k se viu.Dores muscul, k se calhar levará alg tempo a recuperar,se bem k Petit seja 1 grande jogador."
Assim se expressou cristalinamente Flávio Lima, embora, como é natural, tenha toda a razão do mundo a seu lado. (Record/ Comentários/ 22-10-04/ 10.05 h.)
"TRAP diz k há jogad mt sobrecarreg com jogos e k iriam descansar! Ñ vejo nada disso.Ele é kem sabe, mt bem,mas tinha condições de tirar Petit, k tem sido um muro de trab no meio campo e frente, e foi o k se viu.Dores muscul, k se calhar levará alg tempo a recuperar,se bem k Petit seja 1 grande jogador."
Assim se expressou cristalinamente Flávio Lima, embora, como é natural, tenha toda a razão do mundo a seu lado. (Record/ Comentários/ 22-10-04/ 10.05 h.)
Empatias de um ocidental
Ó MacGuffin, sentes-te como eu me sentia durante a sobremesa e a farta sopa do banquete guterriano: “uma incómoda e perniciosa sensação de que tudo e todos estão à deriva. De que cada um navega o seu barco, sem carta e sem pingo de instrumentação. E nem um farol se vislumbra para, no mínimo, evitar o desastre”. O problema, pelo menos no Ocidente, é sempre esse: uma espécie de ansiedade escatológica, uma necessidade fundamental de traçar horizontes claros, uma inusitada vontade de alumiar luzinhas ao fundo do túnel, uma sensata predestinação para adivinhar algum sentido no lado mais extremo do olhar. Esse rigor, essa minúcia, esse tratadismo congénito faz-nos sentir spleen até ao fundo da alma. Faz-nos aparentados a um certo niilismo doce. Faz-nos a viver o desejo e o mal-estar mais puro em suma comunhão de bens. Não é assim?
Ó MacGuffin, sentes-te como eu me sentia durante a sobremesa e a farta sopa do banquete guterriano: “uma incómoda e perniciosa sensação de que tudo e todos estão à deriva. De que cada um navega o seu barco, sem carta e sem pingo de instrumentação. E nem um farol se vislumbra para, no mínimo, evitar o desastre”. O problema, pelo menos no Ocidente, é sempre esse: uma espécie de ansiedade escatológica, uma necessidade fundamental de traçar horizontes claros, uma inusitada vontade de alumiar luzinhas ao fundo do túnel, uma sensata predestinação para adivinhar algum sentido no lado mais extremo do olhar. Esse rigor, essa minúcia, esse tratadismo congénito faz-nos sentir spleen até ao fundo da alma. Faz-nos aparentados a um certo niilismo doce. Faz-nos a viver o desejo e o mal-estar mais puro em suma comunhão de bens. Não é assim?
Cabalíssimas
O simpático correspondente em S. Paulo também vai ajudando à cabalinha nestas brincadeiras dos futebóis, não é Francisco? Em breve, o Miniscente também vai ter um correspondente no Porto. Não ficaremos quites, porque S. Paulo não é o Porto, nem o Porto é ainda S. Paulo. De qualquer maneira, posso avisar que se trata de um antigo aluno, emigrante lisboeta, que é muito parcial nesses assuntos das redes e das linhas de golo transpostas com a invisibilidade da aura benjaminiana, recheado de pregnância aventurosa, além de grande diletante em matérias poético-literárias e outras (imagino). Chama-se Jorge, mas garanto que não tem como apelido esse nome sempre muito em voga entre os judeus holandeses de origem portuguesa: Costa (às vezes, arredondado para "Koster"; imagine-se que até existe uma editora prestigiada com esse nome lá para aquelas bandas!)
O simpático correspondente em S. Paulo também vai ajudando à cabalinha nestas brincadeiras dos futebóis, não é Francisco? Em breve, o Miniscente também vai ter um correspondente no Porto. Não ficaremos quites, porque S. Paulo não é o Porto, nem o Porto é ainda S. Paulo. De qualquer maneira, posso avisar que se trata de um antigo aluno, emigrante lisboeta, que é muito parcial nesses assuntos das redes e das linhas de golo transpostas com a invisibilidade da aura benjaminiana, recheado de pregnância aventurosa, além de grande diletante em matérias poético-literárias e outras (imagino). Chama-se Jorge, mas garanto que não tem como apelido esse nome sempre muito em voga entre os judeus holandeses de origem portuguesa: Costa (às vezes, arredondado para "Koster"; imagine-se que até existe uma editora prestigiada com esse nome lá para aquelas bandas!)
Tabacaria
Cuidado Charlotte. O Vou-Ali-Já-Venho-À-Tabacaria (atravesso em segundos a curvatura do poema sem fim) vai ter agora uma nova arquitectura de exteriores, um novíssimo design de príncipes, um bruxuleante aparato para o prazer do olhar: fotografias macabras, persuasões sanguinolentas, figuras monstruosas, efígies diabólicas e outros heróis do Apocalipse-Mau-Mau-Vamos-Lá-Deixar-De-Fumar! Eles andam aí.
Cuidado Charlotte. O Vou-Ali-Já-Venho-À-Tabacaria (atravesso em segundos a curvatura do poema sem fim) vai ter agora uma nova arquitectura de exteriores, um novíssimo design de príncipes, um bruxuleante aparato para o prazer do olhar: fotografias macabras, persuasões sanguinolentas, figuras monstruosas, efígies diabólicas e outros heróis do Apocalipse-Mau-Mau-Vamos-Lá-Deixar-De-Fumar! Eles andam aí.
sexta-feira, 22 de outubro de 2004
Desire
Os Tuxedomoon ainda existem e vêm agora a Portugal. Vivia na Holanda, quando eles se mudaram dos EUA para a maquínica e traumaticamente portuária Roterdão (já sei que vou ouvir dizer: Já ninguém tem paciência para os ouvir! - Mas eu troco a temporalidade do “já não” pela temporalidade retrospectiva do “ainda já”).
Os Tuxedomoon ainda existem e vêm agora a Portugal. Vivia na Holanda, quando eles se mudaram dos EUA para a maquínica e traumaticamente portuária Roterdão (já sei que vou ouvir dizer: Já ninguém tem paciência para os ouvir! - Mas eu troco a temporalidade do “já não” pela temporalidade retrospectiva do “ainda já”).
Irmão
Afinal é este bicharrão que tem o genoma mais parecido com o da espécie humana. Eu já desconfiava das profundas empatias e simpatias deste nosso comum antepassado. Chama-se Tatraodon Nigroviridis, ou peixe-bola e parece que pode vir a ter algumas possibilidades de assessorar os juízes em Portugal.
Afinal é este bicharrão que tem o genoma mais parecido com o da espécie humana. Eu já desconfiava das profundas empatias e simpatias deste nosso comum antepassado. Chama-se Tatraodon Nigroviridis, ou peixe-bola e parece que pode vir a ter algumas possibilidades de assessorar os juízes em Portugal.
A surpresa da memória
A criação do Minitempo faz-me ver que sempre bloguei. Desde há bem mais de vinte anos que escrevo e preencho cadernos de lés a lés, independentemente da preocupação que incidisse na matéria plástico-literária. O desenterrar dos extractos de textos que tenho recortado desses antigos livros e cadernos está a criar uma espécie de deslumbramento no lado mais sombrio e menos precavido da minha memória. É como se um sol reaparecesse do fundo da noite do quotidiano. Um fio de seda a irromper lentamente pela gruta até à boca da "cisterna" do ser onde se pronuncia, ocasionalmente, o nome de Gauguin. Foi, de facto, uma boa ideia.
A criação do Minitempo faz-me ver que sempre bloguei. Desde há bem mais de vinte anos que escrevo e preencho cadernos de lés a lés, independentemente da preocupação que incidisse na matéria plástico-literária. O desenterrar dos extractos de textos que tenho recortado desses antigos livros e cadernos está a criar uma espécie de deslumbramento no lado mais sombrio e menos precavido da minha memória. É como se um sol reaparecesse do fundo da noite do quotidiano. Um fio de seda a irromper lentamente pela gruta até à boca da "cisterna" do ser onde se pronuncia, ocasionalmente, o nome de Gauguin. Foi, de facto, uma boa ideia.
quinta-feira, 21 de outubro de 2004
No ar!
Comecei hoje a colocar alguns textos no meu novíssimo blogue, o Minitempo. Este novo "Mini" (em pequeno, adorava os morris e os austins) é feito de uma matéria que é subcutânea do Miniscente. Os textos de hoje são coisas íntimas, voláteis, quase rarefeitas e agora tornadas, de novo, em gestos breves e presentes.
Comecei hoje a colocar alguns textos no meu novíssimo blogue, o Minitempo. Este novo "Mini" (em pequeno, adorava os morris e os austins) é feito de uma matéria que é subcutânea do Miniscente. Os textos de hoje são coisas íntimas, voláteis, quase rarefeitas e agora tornadas, de novo, em gestos breves e presentes.
Será mesmo a mais sexy do mundo?
É o que dizem. E dirão bem. Com o espesso véu oligariano, ou com a visibilidade dos deuses?
É o que dizem. E dirão bem. Com o espesso véu oligariano, ou com a visibilidade dos deuses?
quarta-feira, 20 de outubro de 2004
O paradoxo da controvérsia sã
Eu direi até mais, Américo. Quer-me parecer que o espaço blogosférico denota um paradoxo que o torna particularmente feliz para o desenrolar de polémicas. Sendo que, para tal, é essencial que os partners saibam o que é a civilidade e pratiquem sobretudo a abertura e a liberdade da sua expressão própria e não o anonimato ou o constrangimento de tipo tutelado. O paradoxo a que me refiro acaba por colocar em cena o silêncio, a retaguarda reflexiva e a possibilidade de alguma contenção emocional e, ao mesmo tempo, o imediatismo, o espírito de rascunho, o puro escorço e todos os pressupostos de uma reacção em cadeia. Neste campo de possíveis, a polémica tem condições para navegar num mar de horizontes largos, embora com a turbulência mínima e, já se sabe, acompanhada da inevitável prudência do marinheiro solitário. É por isso que discutir, aqui na blogosfera, pode ser um prazer. Não estamos curvados, unilateralmente, para um auditório mais ou menos fixo e previsível (como na imprensa escrita), não estamos expostos à massa e ao ruído disperso dos incautos (como na televisão), nem estamos a fervilhar na carne da emoção mais reactiva (como acontece nos debates ao vivo ou em tertúlia). Aqui respiramos com abertura democrática e participativa, quer o tempo da instantaneidade, quer o tempo da espera que o tabuleiro do jogo em rede nos permite. Aqui as nossas posições não se limitam à exposição que é própria das estátuas ou das esfinges. O texto blogosférico acaba sempre por tornar-se num tira-e-põe estimulante, ou, se se preferir, numa modelação que se vai definindo à medida que a polémica e o intertexto o vão esculpindo. Continuemos.
Eu direi até mais, Américo. Quer-me parecer que o espaço blogosférico denota um paradoxo que o torna particularmente feliz para o desenrolar de polémicas. Sendo que, para tal, é essencial que os partners saibam o que é a civilidade e pratiquem sobretudo a abertura e a liberdade da sua expressão própria e não o anonimato ou o constrangimento de tipo tutelado. O paradoxo a que me refiro acaba por colocar em cena o silêncio, a retaguarda reflexiva e a possibilidade de alguma contenção emocional e, ao mesmo tempo, o imediatismo, o espírito de rascunho, o puro escorço e todos os pressupostos de uma reacção em cadeia. Neste campo de possíveis, a polémica tem condições para navegar num mar de horizontes largos, embora com a turbulência mínima e, já se sabe, acompanhada da inevitável prudência do marinheiro solitário. É por isso que discutir, aqui na blogosfera, pode ser um prazer. Não estamos curvados, unilateralmente, para um auditório mais ou menos fixo e previsível (como na imprensa escrita), não estamos expostos à massa e ao ruído disperso dos incautos (como na televisão), nem estamos a fervilhar na carne da emoção mais reactiva (como acontece nos debates ao vivo ou em tertúlia). Aqui respiramos com abertura democrática e participativa, quer o tempo da instantaneidade, quer o tempo da espera que o tabuleiro do jogo em rede nos permite. Aqui as nossas posições não se limitam à exposição que é própria das estátuas ou das esfinges. O texto blogosférico acaba sempre por tornar-se num tira-e-põe estimulante, ou, se se preferir, numa modelação que se vai definindo à medida que a polémica e o intertexto o vão esculpindo. Continuemos.
terça-feira, 19 de outubro de 2004
Minitempo
Acabei de criar um novo blogue. Chama-se Minitempo e passará a acolher textos meus das últimas duas décadas. Coisas dispersas e dispersamente aprumadas. Nem apenas literárias, políticas ou lúdicas. De tudo um pouco. Já agora, darei sinal no Miniscente das movidas do Minitempo para que o neófito venha a ser avisada e regularmente visitado.
Acabei de criar um novo blogue. Chama-se Minitempo e passará a acolher textos meus das últimas duas décadas. Coisas dispersas e dispersamente aprumadas. Nem apenas literárias, políticas ou lúdicas. De tudo um pouco. Já agora, darei sinal no Miniscente das movidas do Minitempo para que o neófito venha a ser avisada e regularmente visitado.
Inventor (act.)
Manuel: fico tocado pelo modo perspicaz, hábil e decidido com que abordou o meu último romance. Em toda a escrita ficcional, existe sempre uma densa acumulação de factos e, apesar de a indução narrativa nos conduzir quase sempre a uma espécie de desejo de clímax (é uma apetência cultural), a verdade é que o aspecto plástico, conotativo e descritivo nos encaminha para um cruzamento de caminhos onde descobrimos amiúde a nossa alma de nómadas. Para os nómadas, o clímax não é um factor importante, pois o espírito de travessia garante-lhes a narração quotidiana onde afinal vivem e se revêem (a escatologia só é descoberta pelos judeus quando se sedentarizam). Na minha escrita, há um apelo que advém, quem sabe, desse fascínio pelas rotas ancestrais e pelas incessantes travessias e passagens do mundo (e sobretudo entre mundos). Daí a justa conclusão de que pululam, de facto, vários romances num único romance. Daí a interrogação genérica e a dificuldade em rotular que, em todos os meus romances, emerge. É assim para quem lê e igualmente para mim, agora também leitor de uma escrita que já foi só minha.
Manuel: fico tocado pelo modo perspicaz, hábil e decidido com que abordou o meu último romance. Em toda a escrita ficcional, existe sempre uma densa acumulação de factos e, apesar de a indução narrativa nos conduzir quase sempre a uma espécie de desejo de clímax (é uma apetência cultural), a verdade é que o aspecto plástico, conotativo e descritivo nos encaminha para um cruzamento de caminhos onde descobrimos amiúde a nossa alma de nómadas. Para os nómadas, o clímax não é um factor importante, pois o espírito de travessia garante-lhes a narração quotidiana onde afinal vivem e se revêem (a escatologia só é descoberta pelos judeus quando se sedentarizam). Na minha escrita, há um apelo que advém, quem sabe, desse fascínio pelas rotas ancestrais e pelas incessantes travessias e passagens do mundo (e sobretudo entre mundos). Daí a justa conclusão de que pululam, de facto, vários romances num único romance. Daí a interrogação genérica e a dificuldade em rotular que, em todos os meus romances, emerge. É assim para quem lê e igualmente para mim, agora também leitor de uma escrita que já foi só minha.
Significativo
Disse hoje o ministro Rui Gomes da Silva, na sua audição na Alta Autoridade para a Comunicação Social:
“O que o Expresso trazia ao sábado era, no dia seguinte, glosado no Público, e Marcelo Rebelo de Sousa domingo à noite desenvolvia o tema.”
As teorias das cabala remetem sempre para uma obscuridade inexplicável. São, afinal, parecidas ao agir das denúncias inquisitoriais e às práticas do anonimato. O que une este tipo de posturas é a suposição de uma trama inexplicável que gera perseguições (cabala), que persegue (denúncias, rumores, boatos, etc.) ou que se constitui, ela mesma, como fonte (anonimato). Estas posturas são próprias de uma mentalidade que não apreendeu ainda o significado pragmático e diário de uma sociedade aberta. O caso é mais grave quando, quem as enuncia e pratica nos governa a todos (ou se prepara para o fazer). Num tal caso, a cabala adquire qualidades realmente perigosas, já que coloca o estado, a relação entre governados e governantes e as próprias mediações sociais (média, entre outras) como teia imediata dessa neurose de suposições obscuras. O ministro Gomes da Silva está a tornar-se, nos últimos tempos, num ser fantasmático que exibe um profundo mal-estar pela sua normal exposição pública. Quando um poder não suporta a crítica e, por essa razão, transforma a sua conduta em desconfiança, em urdidura obscura, em cabala e até em desejo de sufoco da expressão incómoda, então muito mal vai a volta. Numa democracia com mais apego pela civilidade e pelo espaço público, admito que este ministro não resistisse muito mais tempo no governo.
Disse hoje o ministro Rui Gomes da Silva, na sua audição na Alta Autoridade para a Comunicação Social:
“O que o Expresso trazia ao sábado era, no dia seguinte, glosado no Público, e Marcelo Rebelo de Sousa domingo à noite desenvolvia o tema.”
As teorias das cabala remetem sempre para uma obscuridade inexplicável. São, afinal, parecidas ao agir das denúncias inquisitoriais e às práticas do anonimato. O que une este tipo de posturas é a suposição de uma trama inexplicável que gera perseguições (cabala), que persegue (denúncias, rumores, boatos, etc.) ou que se constitui, ela mesma, como fonte (anonimato). Estas posturas são próprias de uma mentalidade que não apreendeu ainda o significado pragmático e diário de uma sociedade aberta. O caso é mais grave quando, quem as enuncia e pratica nos governa a todos (ou se prepara para o fazer). Num tal caso, a cabala adquire qualidades realmente perigosas, já que coloca o estado, a relação entre governados e governantes e as próprias mediações sociais (média, entre outras) como teia imediata dessa neurose de suposições obscuras. O ministro Gomes da Silva está a tornar-se, nos últimos tempos, num ser fantasmático que exibe um profundo mal-estar pela sua normal exposição pública. Quando um poder não suporta a crítica e, por essa razão, transforma a sua conduta em desconfiança, em urdidura obscura, em cabala e até em desejo de sufoco da expressão incómoda, então muito mal vai a volta. Numa democracia com mais apego pela civilidade e pelo espaço público, admito que este ministro não resistisse muito mais tempo no governo.
Desconstruindo
Caro MacGuffin: eu não sou um derridiano, como pode parecer. Não tenho pendor para ter heróis. Sentir-me-ia mal com uma sombra tutelar a iluminar-me o caminho, sinceramente. No entanto, admiro a obra de Derrida porque a estudei. Apenas isso e sem qualquer vergonha. Apreciei sobretudo o modo como ele entreviu a necessidade de entender a multiplicidade referencial da vida e, por outro lado, pareceu-me operatório didacticamente, para o estudo da produção do significado, a visão que celebra a montagem-desmontagem que atravessa as nossas construções culturais. Daí a dizer-se que, com Derrida, acaba a verdade, ou acaba y e x... vai um grande caminho. O maior dado do pensamento de Derrida, aliás com imenso impacto e protagonismo nos EUA, é precisamente a ideia de que não existe significado último. É uma ideia sucedânea à da conotação de Hjelmslev e à de interpretante que surge, curiosamente, como base da pragmática processual do Peirce. Para além destes factos, devo dizer que não tenho grande simpatia por muitas das ilações - sobretudo políticas - do pensamento de Derrida da sua última fase.
Caro MacGuffin: eu não sou um derridiano, como pode parecer. Não tenho pendor para ter heróis. Sentir-me-ia mal com uma sombra tutelar a iluminar-me o caminho, sinceramente. No entanto, admiro a obra de Derrida porque a estudei. Apenas isso e sem qualquer vergonha. Apreciei sobretudo o modo como ele entreviu a necessidade de entender a multiplicidade referencial da vida e, por outro lado, pareceu-me operatório didacticamente, para o estudo da produção do significado, a visão que celebra a montagem-desmontagem que atravessa as nossas construções culturais. Daí a dizer-se que, com Derrida, acaba a verdade, ou acaba y e x... vai um grande caminho. O maior dado do pensamento de Derrida, aliás com imenso impacto e protagonismo nos EUA, é precisamente a ideia de que não existe significado último. É uma ideia sucedânea à da conotação de Hjelmslev e à de interpretante que surge, curiosamente, como base da pragmática processual do Peirce. Para além destes factos, devo dizer que não tenho grande simpatia por muitas das ilações - sobretudo políticas - do pensamento de Derrida da sua última fase.
Da liberdade - 2
Caro J. P. Coutinho: eu utilizei o conceito de “nominalismo” na acepção da querela dos Universais. Nessa querela, que se prolongou do século XII ao século XIV, a corrente nominalista admitia que apenas as entidades individuais existiam na natureza e, nessa medida, os Universais, ou seja as ideias gerais e abstractas anteriores à experiência humana (de raiz platónica), não se refeririam a nada, sendo considerados como meros nomes (nomina). Esta posição, designada Universalia sunt post res (Universais existem depois das coisas), foi adoptada, entre outros, por Guilherme de Ockham (1285-1349). Há autores que, com certa razão, consideram que o fundo desta polémica continua, ainda de certo modo, viva hoje em dia. A sua abordagem suscitou-me a actualização e a adequação desse ponto de vista. Nessa medida compreendo que haja limites no seu nominalismo, até porque há uma certa ideia (geral e abstracta) de liberdade que pré-existe ao juízo concreto que é exercido em cada acto particular de liberdade. Não direi, portanto, de modo nominalista radical, que não existe liberdade, mas apenas actos de liberdade (como diria o Vinicius a propósito do amor). Seria mais céptico quanto ao universalismo afirmativo com que trata a noção de liberdade, porque penso que ela é filha de um trajecto particularmente ocidental e moderno (Hobbes, Locke, Kant, Rousseau, etc.). Creio que numa cultura como a chinesa não se diz o que nós dizemos, quando dizemos liberdade. Dir-se-á, porventura, o desejo potencial em afirmar e explicitar a expressão, não o nego. Mas não deste modo com que somos falados na proximidade e na compreensão do nosso diálogo que, quer queiramos quer não, tem uma indelével marca que é cultural (podemos chamar-lhe outra coisa).
Caro J. P. Coutinho: eu utilizei o conceito de “nominalismo” na acepção da querela dos Universais. Nessa querela, que se prolongou do século XII ao século XIV, a corrente nominalista admitia que apenas as entidades individuais existiam na natureza e, nessa medida, os Universais, ou seja as ideias gerais e abstractas anteriores à experiência humana (de raiz platónica), não se refeririam a nada, sendo considerados como meros nomes (nomina). Esta posição, designada Universalia sunt post res (Universais existem depois das coisas), foi adoptada, entre outros, por Guilherme de Ockham (1285-1349). Há autores que, com certa razão, consideram que o fundo desta polémica continua, ainda de certo modo, viva hoje em dia. A sua abordagem suscitou-me a actualização e a adequação desse ponto de vista. Nessa medida compreendo que haja limites no seu nominalismo, até porque há uma certa ideia (geral e abstracta) de liberdade que pré-existe ao juízo concreto que é exercido em cada acto particular de liberdade. Não direi, portanto, de modo nominalista radical, que não existe liberdade, mas apenas actos de liberdade (como diria o Vinicius a propósito do amor). Seria mais céptico quanto ao universalismo afirmativo com que trata a noção de liberdade, porque penso que ela é filha de um trajecto particularmente ocidental e moderno (Hobbes, Locke, Kant, Rousseau, etc.). Creio que numa cultura como a chinesa não se diz o que nós dizemos, quando dizemos liberdade. Dir-se-á, porventura, o desejo potencial em afirmar e explicitar a expressão, não o nego. Mas não deste modo com que somos falados na proximidade e na compreensão do nosso diálogo que, quer queiramos quer não, tem uma indelével marca que é cultural (podemos chamar-lhe outra coisa).
segunda-feira, 18 de outubro de 2004
Da liberdade - 1
Diz J. P. Coutinho, defendendo uma posição claramente nominalista: “Não existe liberdade em abstracto”, ou seja, apenas existe “uma liberdade tutelada pela lei, que se aplica, em concreto, a casos individualizados e concretos”. O que quer dizer que ninguém se pode situar acima “das consequências” dos actos que pratica, já que uma “sociedade livre” se define, precisamente, “pelos limites que impõe” à própria liberdade.
Apesar de toda a razoabilidade que atravessa a escrita de J. P. Coutinho, é bom não esquecer que continua a haver muita gente que ainda pensa a liberdade como algo que se anuncia vindo de fora. Oriundo de um alhures sem nome. De Marte, porventura. Esperam que um partido, uma “instituição credível”, uma associação “digna”, um cidadão “exemplar” ou um enviesado manifesto oriundo dos média associe aquilo que se passa, no dia a dia, à liberdade ou à falta dela. Esperam alertas e aleluias. Limitam-se a isso.
É uma posição bastante generalizada, entre nós, que parece pressentir a presença de um “universal” anterior a cada caso concreto, a cada caso individualizado e particular. Por isso, ainda há quem fale descontraidamente acerca de “amplas” liberdades dando-se ao luxo de inventariá-las ou delimitá-las, não vá a divindade esquecer-se de distribuir alguma delas aos mortais: liberdade económica, cultural, social, etc (como se vê, a querela medieval relativa aos universais continua bem viva). Mas, na verdade, uma comunidade com a constituição mais livre do mundo, com a regulação mais ordenada do universo, com a gestão mais ideal do património comum ou com a melhor das civilidades apenas o é, não porque uma ordem superior tenha delegado nos seus habitantes uma abstracção chamada liberdade, mas porque o exercício da liberdade nasce e emana de cada um de nós, embora, como é normal, sempre em tensão com os limites (legais, mas tacitamente fluidos) que a mudivivência de uma sociedade livre confere.
A democracia vive e legitima-se, dia a dia, tendo como referente um esteio fundamental que se centra na defesa das liberdades, dos direitos e das garantias. A igualdade de oportunidades e as regras que salvaguardam o bem comum deverão sempre submeter-se a esse esteio. A liberdade não é, deste modo, um deus, ou um dom natural anterior ao fazer dos homens; a liberdade resulta antes, e em única instância, da iniciativa e do querer-fazer autónomo dos homens que se joga naquela fronteira incerta que separa o “estar já acima” e o “estar ainda abaixo” das consequências dos actos praticados. A lei e o código constituem um registo que pretende situar o nível dessa separação. Mas o exercício dos actos por eles observados nem sempre se conforma com essa linearidade. A tonalidade oscilante torna-se dominante, a ambiguidade vacilante torna-se amiúde soberana.
É por isso que eu preferiria definir uma sociedade livre, não tanto pelos limites em si mesmos, como afirmou J. P. Coutinho, mas antes pela própria (possibilidade de) discussão dos limites que se jogam em cada uso de liberdade. A abertura da sociedade disputa-se nesse intervalo onde o possível e a vontade incessantemente se digladiam. É nessa falha, é nessa linha incerta onde se comprimem pressões e torrentes diferentes, às vezes opostas e desiguais, que o código - ou a lei - acaba por definir, no tempo e nas condições específicas da polis, a sua abertura e o seu fechamento relativos.
Diz J. P. Coutinho, defendendo uma posição claramente nominalista: “Não existe liberdade em abstracto”, ou seja, apenas existe “uma liberdade tutelada pela lei, que se aplica, em concreto, a casos individualizados e concretos”. O que quer dizer que ninguém se pode situar acima “das consequências” dos actos que pratica, já que uma “sociedade livre” se define, precisamente, “pelos limites que impõe” à própria liberdade.
Apesar de toda a razoabilidade que atravessa a escrita de J. P. Coutinho, é bom não esquecer que continua a haver muita gente que ainda pensa a liberdade como algo que se anuncia vindo de fora. Oriundo de um alhures sem nome. De Marte, porventura. Esperam que um partido, uma “instituição credível”, uma associação “digna”, um cidadão “exemplar” ou um enviesado manifesto oriundo dos média associe aquilo que se passa, no dia a dia, à liberdade ou à falta dela. Esperam alertas e aleluias. Limitam-se a isso.
É uma posição bastante generalizada, entre nós, que parece pressentir a presença de um “universal” anterior a cada caso concreto, a cada caso individualizado e particular. Por isso, ainda há quem fale descontraidamente acerca de “amplas” liberdades dando-se ao luxo de inventariá-las ou delimitá-las, não vá a divindade esquecer-se de distribuir alguma delas aos mortais: liberdade económica, cultural, social, etc (como se vê, a querela medieval relativa aos universais continua bem viva). Mas, na verdade, uma comunidade com a constituição mais livre do mundo, com a regulação mais ordenada do universo, com a gestão mais ideal do património comum ou com a melhor das civilidades apenas o é, não porque uma ordem superior tenha delegado nos seus habitantes uma abstracção chamada liberdade, mas porque o exercício da liberdade nasce e emana de cada um de nós, embora, como é normal, sempre em tensão com os limites (legais, mas tacitamente fluidos) que a mudivivência de uma sociedade livre confere.
A democracia vive e legitima-se, dia a dia, tendo como referente um esteio fundamental que se centra na defesa das liberdades, dos direitos e das garantias. A igualdade de oportunidades e as regras que salvaguardam o bem comum deverão sempre submeter-se a esse esteio. A liberdade não é, deste modo, um deus, ou um dom natural anterior ao fazer dos homens; a liberdade resulta antes, e em única instância, da iniciativa e do querer-fazer autónomo dos homens que se joga naquela fronteira incerta que separa o “estar já acima” e o “estar ainda abaixo” das consequências dos actos praticados. A lei e o código constituem um registo que pretende situar o nível dessa separação. Mas o exercício dos actos por eles observados nem sempre se conforma com essa linearidade. A tonalidade oscilante torna-se dominante, a ambiguidade vacilante torna-se amiúde soberana.
É por isso que eu preferiria definir uma sociedade livre, não tanto pelos limites em si mesmos, como afirmou J. P. Coutinho, mas antes pela própria (possibilidade de) discussão dos limites que se jogam em cada uso de liberdade. A abertura da sociedade disputa-se nesse intervalo onde o possível e a vontade incessantemente se digladiam. É nessa falha, é nessa linha incerta onde se comprimem pressões e torrentes diferentes, às vezes opostas e desiguais, que o código - ou a lei - acaba por definir, no tempo e nas condições específicas da polis, a sua abertura e o seu fechamento relativos.
A cegueira do anjo azul (act.)
Eu bem disse que o Petit ia fazer um belo golo no Estádio da Luz. Até o Miguel Sousa Tavares (19/10/2004, 20.45 h.) afirmou que o golo foi mesmo golo (e não chamou "pomba" à águia, apesar de - e nisso estou com todos os que têm civilidade - condenar as infelizes e grosseiras considerações pessoais de Vieira).
Eu bem disse que o Petit ia fazer um belo golo no Estádio da Luz. Até o Miguel Sousa Tavares (19/10/2004, 20.45 h.) afirmou que o golo foi mesmo golo (e não chamou "pomba" à águia, apesar de - e nisso estou com todos os que têm civilidade - condenar as infelizes e grosseiras considerações pessoais de Vieira).
domingo, 17 de outubro de 2004
Instilação
Caro Américo, eu não estive a trocar mimos com o Alberto Gonçalves. Apenas quis falar de moda, de mais nada. Não do Moda Lisboa, porque não estive lá infelizmente, mas do texto da moda, esse que já era por mim esperado muito antes de Derrida ter ressuscitado. O que parece ser agora o caso, é verdade. Não aqui no Miniscente, de certeza. Há-de haver outros espaços e delongas para isso. Além do mais, aprecio suficientemente o Alberto para não ter desvendado nas suas palavras fosse o que fosse que me levasse a “abominar” os claríssimos traços inscritos no horizonte.
Caro Américo, eu não estive a trocar mimos com o Alberto Gonçalves. Apenas quis falar de moda, de mais nada. Não do Moda Lisboa, porque não estive lá infelizmente, mas do texto da moda, esse que já era por mim esperado muito antes de Derrida ter ressuscitado. O que parece ser agora o caso, é verdade. Não aqui no Miniscente, de certeza. Há-de haver outros espaços e delongas para isso. Além do mais, aprecio suficientemente o Alberto para não ter desvendado nas suas palavras fosse o que fosse que me levasse a “abominar” os claríssimos traços inscritos no horizonte.
Pega, trampa e semiótica líquida de Tancinha Variz
É verdade, lá surgiu um novíssimo blogue que é da Hana bicaense. Ela, na sua agilidade cenográfica, bem podia ser minha filha e é como se fosse, pronto. Só a gente sabe porquê. E o seu DJ Miguel ainda melhor. Apresenta-se assim, sob o signo inicial de Judy Carol, votando-se à posteridade e deliciando-se com espessas florestas em slow motion: “À deriva entre a guerra dos Mak's e os plágios do New Workers Illustratore. A semiótica e um cimbalino à beira de uma vinheta de cochicho. São os segredos de uma capuchinha à beira de um ataque de nervos. Ilustrações de Tancinha Variz.”
De visita obrigatória.
É verdade, lá surgiu um novíssimo blogue que é da Hana bicaense. Ela, na sua agilidade cenográfica, bem podia ser minha filha e é como se fosse, pronto. Só a gente sabe porquê. E o seu DJ Miguel ainda melhor. Apresenta-se assim, sob o signo inicial de Judy Carol, votando-se à posteridade e deliciando-se com espessas florestas em slow motion: “À deriva entre a guerra dos Mak's e os plágios do New Workers Illustratore. A semiótica e um cimbalino à beira de uma vinheta de cochicho. São os segredos de uma capuchinha à beira de um ataque de nervos. Ilustrações de Tancinha Variz.”
De visita obrigatória.
O corporativismo
Não se trata apenas de jornalistas que defendem e enaltecem jornalistas. Não se trata apenas de sindicalistas que defendem e enaltecem sindicalistas. Não se trata apenas de políticos que defendem e enaltecem políticos. As reacções da polícia judiciária, face ao anúncio de uma nova polícia para combater a fraude fiscal, também herdam o profundo espírito corporativo da pátria. O que é que se há-de fazer?
Não se trata apenas de jornalistas que defendem e enaltecem jornalistas. Não se trata apenas de sindicalistas que defendem e enaltecem sindicalistas. Não se trata apenas de políticos que defendem e enaltecem políticos. As reacções da polícia judiciária, face ao anúncio de uma nova polícia para combater a fraude fiscal, também herdam o profundo espírito corporativo da pátria. O que é que se há-de fazer?
sábado, 16 de outubro de 2004
sexta-feira, 15 de outubro de 2004
Apocalíptico
O meu amigo Fernando Cabeça acaba de me fazer eco, desde Amesterdão, de um dessas notícias apocalípticas que já se tornaram banais e esperadas nos nossos dias. Talvez, por isso mesmo, tenham tendência em transformar-se em não-notícia:
Nunca o planeta esteve tão poluído com “stikstofdioxide” (também não sei bem o que é) como hoje parece ser o caso dos céus holandeses. Quem o diz são as imagens do satélite europeu Envisat. O Secretário de Estado da tutela descreveu a situação como anormalmente grave. “Buitengewoon ernstig”, em Holandês.
E agora?
Também não tenho resposta. Seja com for, o “apocalíptico” define-se como uma visão. É esse aliás o seu significado mais incisivo e original. Mas trata-se de uma visão que nos leva a ver o que não está deste lado. O “apocalíptico” consistia, noutros tempos, em poder ver o trono de deus (essa literatura, de que o barroco danielítico foi um expoente muito especial, durou uns quatro séculos. Antes e depois de Cristo). Hoje em dia, o que nos resta desse ímpeto literário que procurava explicações para o desconcerto do mundo nessas visões magnânimas, únicas e transcendentes?
Creio que nos restam as imagens aceleradíssimas que nos são enviadas pelos satélites. Amanhã, quem sabe, com um pequeno implante no cérebro, poderemos, também nós, enviar imagens dessas para o outro lado da Via Láctea. Numa tal nova antropologia já cyborguizada, o que nos interessará a poluição dos céus?
O mesmo que nos interessa essa generosa notícia, Fernando. Dá à angústia uma leve sensação de frescura. Era isso, pelo menos, o que os carrascos diziam da guilhotina, na França de outros tempos. Uma leve sensação de frescura. Uma breve e ligeiríssima sensação de “stikstofdioxide”.
O meu amigo Fernando Cabeça acaba de me fazer eco, desde Amesterdão, de um dessas notícias apocalípticas que já se tornaram banais e esperadas nos nossos dias. Talvez, por isso mesmo, tenham tendência em transformar-se em não-notícia:
Nunca o planeta esteve tão poluído com “stikstofdioxide” (também não sei bem o que é) como hoje parece ser o caso dos céus holandeses. Quem o diz são as imagens do satélite europeu Envisat. O Secretário de Estado da tutela descreveu a situação como anormalmente grave. “Buitengewoon ernstig”, em Holandês.
E agora?
Também não tenho resposta. Seja com for, o “apocalíptico” define-se como uma visão. É esse aliás o seu significado mais incisivo e original. Mas trata-se de uma visão que nos leva a ver o que não está deste lado. O “apocalíptico” consistia, noutros tempos, em poder ver o trono de deus (essa literatura, de que o barroco danielítico foi um expoente muito especial, durou uns quatro séculos. Antes e depois de Cristo). Hoje em dia, o que nos resta desse ímpeto literário que procurava explicações para o desconcerto do mundo nessas visões magnânimas, únicas e transcendentes?
Creio que nos restam as imagens aceleradíssimas que nos são enviadas pelos satélites. Amanhã, quem sabe, com um pequeno implante no cérebro, poderemos, também nós, enviar imagens dessas para o outro lado da Via Láctea. Numa tal nova antropologia já cyborguizada, o que nos interessará a poluição dos céus?
O mesmo que nos interessa essa generosa notícia, Fernando. Dá à angústia uma leve sensação de frescura. Era isso, pelo menos, o que os carrascos diziam da guilhotina, na França de outros tempos. Uma leve sensação de frescura. Uma breve e ligeiríssima sensação de “stikstofdioxide”.
Bin Laden afinal está na China!
Quem o diz é o El Mundo de hoje. É a vingança do chinês a pesar na campanha eleitoral norte-americana. Segundo Gordon Thomas, Bush poderia, a qualquer momento, tirar o coelhão da cartola.
O que já não se sabe é o que pode aparecer depois de retirada a cartola. Já nos habituámos todos a ver aparições de todos os tipos: ferventes, fogosas, explosivas ou desastrosas. Já nos habituámos todos aos maiores desaires e aos mais imponderados mal-entendidos diplomáticos. Embora, pior do que a agilidade diplomática de Espanha, seja, hoje em dia, francamente difícil.
Olhos postos, pois, na grande muralha.
Quem o diz é o El Mundo de hoje. É a vingança do chinês a pesar na campanha eleitoral norte-americana. Segundo Gordon Thomas, Bush poderia, a qualquer momento, tirar o coelhão da cartola.
O que já não se sabe é o que pode aparecer depois de retirada a cartola. Já nos habituámos todos a ver aparições de todos os tipos: ferventes, fogosas, explosivas ou desastrosas. Já nos habituámos todos aos maiores desaires e aos mais imponderados mal-entendidos diplomáticos. Embora, pior do que a agilidade diplomática de Espanha, seja, hoje em dia, francamente difícil.
Olhos postos, pois, na grande muralha.
Para a história dos judeus da Argélia
(extracto da última entrevista de Derrida: Le Monde, 19/08/2004)
Les contingences ont fait de moi un juif français d'Algérie de la génération née avant la "guerre d'indépendance": autant de singularités, même parmi les juifs et même parmi les juifs d'Algérie. J'ai participé à une transformation extraordinaire du judaïsme français d'Algérie: mes arrière-grands-parents étaient encore très proches des Arabes par la langue, les coutumes, etc. Après le décret Crémieux (1870), à la fin du XIXe siècle, la génération suivante s'est embourgeoisée: bien qu'elle se soit mariée presque clandestinement dans l'arrière-cour d'une mairie d'Alger à cause des pogroms (en pleine affaire Dreyfus), ma grand-mère élevait déjà ses filles comme des bourgeoises parisiennes (bonnes manières du 16e arrondissement, leçons de piano...). Puis ce fut la génération de mes parents : peu d'intellectuels, des commerçants surtout, modestes ou non, dont certains exploitaient déjà une situation coloniale en se faisant les représentants exclusifs de grandes marques métropolitaines : avec un petit bureau de 10 mètres carrés et sans secrétaire, on pouvait représenter tout le "savon de Marseille" en Afrique du Nord - je simplifie un peu. Puis ce fut ma génération (une majorité d'intellectuels : professions libérales, enseignement, médecine, droit, etc.). Et presque tout ce monde en France en 1962. Moi, ce fut plus tôt (1949). C'est avec moi, j'exagère à peine, que les mariages "mixtes" ont commencé. De façon quasi tragique, révolutionnaire, rare et risquée.
Não é interessante, Nuno?
(extracto da última entrevista de Derrida: Le Monde, 19/08/2004)
Les contingences ont fait de moi un juif français d'Algérie de la génération née avant la "guerre d'indépendance": autant de singularités, même parmi les juifs et même parmi les juifs d'Algérie. J'ai participé à une transformation extraordinaire du judaïsme français d'Algérie: mes arrière-grands-parents étaient encore très proches des Arabes par la langue, les coutumes, etc. Après le décret Crémieux (1870), à la fin du XIXe siècle, la génération suivante s'est embourgeoisée: bien qu'elle se soit mariée presque clandestinement dans l'arrière-cour d'une mairie d'Alger à cause des pogroms (en pleine affaire Dreyfus), ma grand-mère élevait déjà ses filles comme des bourgeoises parisiennes (bonnes manières du 16e arrondissement, leçons de piano...). Puis ce fut la génération de mes parents : peu d'intellectuels, des commerçants surtout, modestes ou non, dont certains exploitaient déjà une situation coloniale en se faisant les représentants exclusifs de grandes marques métropolitaines : avec un petit bureau de 10 mètres carrés et sans secrétaire, on pouvait représenter tout le "savon de Marseille" en Afrique du Nord - je simplifie un peu. Puis ce fut ma génération (une majorité d'intellectuels : professions libérales, enseignement, médecine, droit, etc.). Et presque tout ce monde en France en 1962. Moi, ce fut plus tôt (1949). C'est avec moi, j'exagère à peine, que les mariages "mixtes" ont commencé. De façon quasi tragique, révolutionnaire, rare et risquée.
Não é interessante, Nuno?
Segurança interna
Depressões, erva, manigâncias sindicais, psicologia de turno, recusas, amuos, lavagem de cavalos, eis como anda a GNR.
Depressões, erva, manigâncias sindicais, psicologia de turno, recusas, amuos, lavagem de cavalos, eis como anda a GNR.
quinta-feira, 14 de outubro de 2004
Tracções fatais
Pacheco Pereira diz hoje no Público o que havia a dizer sobre o paupérrimo programa da RTP acerca da panóplia direita/esquerda (não me lembro o nome do dito). Sempre me perseguiu essa mesma ideia de que os manos Portas habitavam em convergência, embora com efabulários aparentemente diferentes e vocábulos sumamente idênticos. Afinal não sou o único a pensar assim. PP e Bloco recuperam, de facto, entre nós os "universais" que em quase já nada acompanham o nominalismo intensamente global vivido nos dias de hoje (deixemos, pois, de lado as fronteiras terrestres e o habitual cortejo de pacovices que lhe são próprias).
Pacheco Pereira diz hoje no Público o que havia a dizer sobre o paupérrimo programa da RTP acerca da panóplia direita/esquerda (não me lembro o nome do dito). Sempre me perseguiu essa mesma ideia de que os manos Portas habitavam em convergência, embora com efabulários aparentemente diferentes e vocábulos sumamente idênticos. Afinal não sou o único a pensar assim. PP e Bloco recuperam, de facto, entre nós os "universais" que em quase já nada acompanham o nominalismo intensamente global vivido nos dias de hoje (deixemos, pois, de lado as fronteiras terrestres e o habitual cortejo de pacovices que lhe são próprias).
quarta-feira, 13 de outubro de 2004
Universidades e anúncios luminosos
O país rural de há quarenta anos, entre os ciclos migratórios mais variados, acabou por sentir uma atracção irresistível pelas periferias urbanas criadas na foz do Tejo e do Douro. Basta olhar para o país e ver o espectáculo de tal atrofia. De resto, o velho Portugal pequenino dos concelhos medievais pouco tinha para oferecer. Pequenas cidades, hábitos fechados, rotinas de corte da aldeia, horizontes diminutos. Ainda hoje, depois de alguma euforia das chamadas “cidades médias” nas últimas duas décadas, a verdade é que, fora da influência das áreas urbanas de Lisboa e Porto, são raríssimas as cidades com mais de cem mil habitantes e contam-se pelos dedos de uma mão as que, no seu espaço estritamente urbano, têm mais de cinquenta mil habitantes.
Talvez por isso mesmo, um certo novo-riquismo de raiz ruralizante passou a desenvolver, nos últimos anos, um conceito de cidade-fachada que, pretensa e ilusoriamente, garantiria aos locais e aos visitantes uma auto-imagem reconfortante de vida urbana. Ou seja, indo a exemplos concretos, no tempo de Salazar bastava ostentar, numa cidadezinha, o Liceu, o Palácio da Justiça, os Correios e o edifício da Assistência Nacional aos Tuberculosos (Braga tinha ainda um estádio e Coimbra o Portugal dos Pequeninos). Havia menos exigência. Mas hoje, a nova cultura de cidade-fachada impõe, pelo menos, um ou dois chamados hipermercados, umas circulares com quatro pistas, um pomposo Parque Urbano, umas piscinas novas, um estádio municipal e sobretudo uma casa muito grande, no centro das cidade, se possível, onde apareça escrita a palavra “Universidade” (independentemente do que se passe lá dentro: boxe, danças de salão, debates dobre didáctica dos média, criação de capas e batinas, lançamentos do dardo ou prática de fitness). É assim, hoje em dia, os descendentes da ruralidade mais atávica querem ter uma universidade em cada rua. Fica bem e deverá dar alguma auto-confiança, presumo eu.
O mais grave é que o conluio dos votos entre o poder central e algum poder local tem resultado em promessas de universidades: foi Viseu, foi Bragança e, agora, à presumível boleia de Bolonha (Bolonha é um nome que, nos dias de hoje, dá para tudo) já se fala nas Universidades Politécnicas.
Contra esta estranhíssima tendência expansionista, a que falta amiúde a massa crítica adequada (sejamos sérios!), deve dizer-se que grande parte das actuais universidades públicas espalhadas pelo país tem a tendência para se converter em pura espuma. Isto é: cada vez há menos alunos e, por outro lado, cada vez se irá exigir, em conformidade, uma maior engenharia para enquadrar (e pagar) o desmesurado número de professores existente. É assim a realidade e ninguém deve temer que a mesma se pronuncie em voz alta, independentemente das novas vocações para a formação contínua, para o regime de pós-graduações e complementos e para o espaço imaginativo que venha a aprofundar a ligação entre as universidades e a rede tecnológica.
Na crise actual - a que o país parece querer reagir em fuga para a frente -, o diagnóstico mais realista está confinado a uma inevitável e progressiva racionalização a que não escapa a necessidade de avaliação independente, a discriminação positiva onde haja investigação a sério e, por fim, a convicção de que, entre as universidades privadas, só realmente as muito boas acabarão por sobreviver a curto e médio prazo (não acontecendo, já agora, o mesmo a certas universidades públicas por serem os nossos impostos que as sustêm).
Neste âmbito, como podem ainda os pitorescos da política continuar a não resistir a reivindicações completamente terceiro-mundistas?
Se o precioso esteio da democracia é, de facto, a defesa dos direitos, garantias e liberdades, cada vez mais vamos todos tendo a consciência de que a geografia pacóvia do voto nem sempre é bom conselheiro para o sadio ordenamento do país. No fundo, no fundo, o que pesa sobre Portugal é ainda a fraca interiorização do que verdadeiramente é, no dia a dia, uma sociedade aberta. Daí ainda a importância excessiva do localismo, das reivindicações à imagem da “terrinha” e da ilusão do debate aberto face ao subterfúgio ruralizante da cidade-fachada.
O país rural de há quarenta anos, entre os ciclos migratórios mais variados, acabou por sentir uma atracção irresistível pelas periferias urbanas criadas na foz do Tejo e do Douro. Basta olhar para o país e ver o espectáculo de tal atrofia. De resto, o velho Portugal pequenino dos concelhos medievais pouco tinha para oferecer. Pequenas cidades, hábitos fechados, rotinas de corte da aldeia, horizontes diminutos. Ainda hoje, depois de alguma euforia das chamadas “cidades médias” nas últimas duas décadas, a verdade é que, fora da influência das áreas urbanas de Lisboa e Porto, são raríssimas as cidades com mais de cem mil habitantes e contam-se pelos dedos de uma mão as que, no seu espaço estritamente urbano, têm mais de cinquenta mil habitantes.
Talvez por isso mesmo, um certo novo-riquismo de raiz ruralizante passou a desenvolver, nos últimos anos, um conceito de cidade-fachada que, pretensa e ilusoriamente, garantiria aos locais e aos visitantes uma auto-imagem reconfortante de vida urbana. Ou seja, indo a exemplos concretos, no tempo de Salazar bastava ostentar, numa cidadezinha, o Liceu, o Palácio da Justiça, os Correios e o edifício da Assistência Nacional aos Tuberculosos (Braga tinha ainda um estádio e Coimbra o Portugal dos Pequeninos). Havia menos exigência. Mas hoje, a nova cultura de cidade-fachada impõe, pelo menos, um ou dois chamados hipermercados, umas circulares com quatro pistas, um pomposo Parque Urbano, umas piscinas novas, um estádio municipal e sobretudo uma casa muito grande, no centro das cidade, se possível, onde apareça escrita a palavra “Universidade” (independentemente do que se passe lá dentro: boxe, danças de salão, debates dobre didáctica dos média, criação de capas e batinas, lançamentos do dardo ou prática de fitness). É assim, hoje em dia, os descendentes da ruralidade mais atávica querem ter uma universidade em cada rua. Fica bem e deverá dar alguma auto-confiança, presumo eu.
O mais grave é que o conluio dos votos entre o poder central e algum poder local tem resultado em promessas de universidades: foi Viseu, foi Bragança e, agora, à presumível boleia de Bolonha (Bolonha é um nome que, nos dias de hoje, dá para tudo) já se fala nas Universidades Politécnicas.
Contra esta estranhíssima tendência expansionista, a que falta amiúde a massa crítica adequada (sejamos sérios!), deve dizer-se que grande parte das actuais universidades públicas espalhadas pelo país tem a tendência para se converter em pura espuma. Isto é: cada vez há menos alunos e, por outro lado, cada vez se irá exigir, em conformidade, uma maior engenharia para enquadrar (e pagar) o desmesurado número de professores existente. É assim a realidade e ninguém deve temer que a mesma se pronuncie em voz alta, independentemente das novas vocações para a formação contínua, para o regime de pós-graduações e complementos e para o espaço imaginativo que venha a aprofundar a ligação entre as universidades e a rede tecnológica.
Na crise actual - a que o país parece querer reagir em fuga para a frente -, o diagnóstico mais realista está confinado a uma inevitável e progressiva racionalização a que não escapa a necessidade de avaliação independente, a discriminação positiva onde haja investigação a sério e, por fim, a convicção de que, entre as universidades privadas, só realmente as muito boas acabarão por sobreviver a curto e médio prazo (não acontecendo, já agora, o mesmo a certas universidades públicas por serem os nossos impostos que as sustêm).
Neste âmbito, como podem ainda os pitorescos da política continuar a não resistir a reivindicações completamente terceiro-mundistas?
Se o precioso esteio da democracia é, de facto, a defesa dos direitos, garantias e liberdades, cada vez mais vamos todos tendo a consciência de que a geografia pacóvia do voto nem sempre é bom conselheiro para o sadio ordenamento do país. No fundo, no fundo, o que pesa sobre Portugal é ainda a fraca interiorização do que verdadeiramente é, no dia a dia, uma sociedade aberta. Daí ainda a importância excessiva do localismo, das reivindicações à imagem da “terrinha” e da ilusão do debate aberto face ao subterfúgio ruralizante da cidade-fachada.
segunda-feira, 11 de outubro de 2004
Decoberta
Descobri hoje que o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB) tem uma página chamada “AUTORES NACIONAIS: BLOGS”. Estão lá doze. É para aristocratas. Pelo lado que me toca, obrigado pela referência. Sinto-me na “grelha das celebridades”. Um alívio enorme. Não entendo lá muito bem é o método encontrado, porque há um pouco de tudo. A tutela é que sabe. Mas nada como espreitar e... ver.
Descobri hoje que o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB) tem uma página chamada “AUTORES NACIONAIS: BLOGS”. Estão lá doze. É para aristocratas. Pelo lado que me toca, obrigado pela referência. Sinto-me na “grelha das celebridades”. Um alívio enorme. Não entendo lá muito bem é o método encontrado, porque há um pouco de tudo. A tutela é que sabe. Mas nada como espreitar e... ver.
Derrida (agora no deleite)
Era de um texto destes que eu estava à espera. O texto da moda. Fica bem. E eu também me rio, juro. Adoro praticar a galhofa que está na moda. Rio com ela e através dela. Afectos e nuvens rápidas. Mas confesso que, com os anos, também desenvolvi os sentidos do riso ao praticar as flexões e outros exercícios descritos por Derrida, até porque aquilo que ele andou a escrever não era uma teoria, nem uma tese, nem uma filosofia compreensiva. Era uma aula de ginástica. Fitness só para gente bem. Por mais anormal, carolíngio ou berbere que o homem tenha sido, caramba, pelo menos deu-nos a ver que as coisas (e os homens, mesmo se a dias) estão sempre em movimento e em postura incertos. É a realidade que é abananada e isso vê-se, não nos textos, mas no jogo dos dados ou nos salpicos das ondas. Devo dizer que não tinha ainda posto os olhos nas páginas de Derrida e já me ria de fantasmas. Dos meus, sobretudo, mas, também, dos fantasmas dos outros. Depois, percebi que esse tipo de atitude se encontrava no local preciso onde a liberdade e o abismo se encontram. Já nem sei onde é que essa visão marcou encontro comigo. Era uma Plaza cheia de sol e anunciava-se um espectáculo de circo para a hora do crepúsculo. Já foi há tanto tempo, de nada quase me lembro. Só sei que o, por mim estimadíssimo, Homem a Dias, às vezes, ao lado da sua verve interessante e sempre certeira, bem podia rir a sós ou na companhia de um dos seus fantasmas mais preferidos. Chamado Derrida. E uma tal operação deveria mesmo ter o sabor da hortelã-pimenta. É que me parece que esse fantasma é daqueles que lhe mordeu com força no pescoço. E porquê? talvez por medo da fotografia. Ou dos blogues. Quem sabe? mas o que interessa saber, hoje em dia? (embora esteja quase certo de que, se o bom Wittgenstein ou o óptimo Rorty tivessem morrido ontem, ou mesmo anteontem, esse tipo de moda-texto não teria sido escrito. Naturalmente correcto. Ou… não teria sido escrito dessa forma. Mas assim, deste modo in-ó-rico, a atirar para o cómico e para o “estilo celebridade” fica bem e até dá com a estação do ano. Folhas caídas, suavidades lentas, raízes a regenerarem a vida. Viva o Benfica, já agora).
Era de um texto destes que eu estava à espera. O texto da moda. Fica bem. E eu também me rio, juro. Adoro praticar a galhofa que está na moda. Rio com ela e através dela. Afectos e nuvens rápidas. Mas confesso que, com os anos, também desenvolvi os sentidos do riso ao praticar as flexões e outros exercícios descritos por Derrida, até porque aquilo que ele andou a escrever não era uma teoria, nem uma tese, nem uma filosofia compreensiva. Era uma aula de ginástica. Fitness só para gente bem. Por mais anormal, carolíngio ou berbere que o homem tenha sido, caramba, pelo menos deu-nos a ver que as coisas (e os homens, mesmo se a dias) estão sempre em movimento e em postura incertos. É a realidade que é abananada e isso vê-se, não nos textos, mas no jogo dos dados ou nos salpicos das ondas. Devo dizer que não tinha ainda posto os olhos nas páginas de Derrida e já me ria de fantasmas. Dos meus, sobretudo, mas, também, dos fantasmas dos outros. Depois, percebi que esse tipo de atitude se encontrava no local preciso onde a liberdade e o abismo se encontram. Já nem sei onde é que essa visão marcou encontro comigo. Era uma Plaza cheia de sol e anunciava-se um espectáculo de circo para a hora do crepúsculo. Já foi há tanto tempo, de nada quase me lembro. Só sei que o, por mim estimadíssimo, Homem a Dias, às vezes, ao lado da sua verve interessante e sempre certeira, bem podia rir a sós ou na companhia de um dos seus fantasmas mais preferidos. Chamado Derrida. E uma tal operação deveria mesmo ter o sabor da hortelã-pimenta. É que me parece que esse fantasma é daqueles que lhe mordeu com força no pescoço. E porquê? talvez por medo da fotografia. Ou dos blogues. Quem sabe? mas o que interessa saber, hoje em dia? (embora esteja quase certo de que, se o bom Wittgenstein ou o óptimo Rorty tivessem morrido ontem, ou mesmo anteontem, esse tipo de moda-texto não teria sido escrito. Naturalmente correcto. Ou… não teria sido escrito dessa forma. Mas assim, deste modo in-ó-rico, a atirar para o cómico e para o “estilo celebridade” fica bem e até dá com a estação do ano. Folhas caídas, suavidades lentas, raízes a regenerarem a vida. Viva o Benfica, já agora).
Digladiam-se por que lugar?
Luís Delgado escreveu hoje que há coisas no mundo que se “degladiam ferozmente”. Jerónimo de Sousa disse ontem que não era “candidatável”. Eu até acho que eles foram companheiros de carteira na escola primária.
Luís Delgado escreveu hoje que há coisas no mundo que se “degladiam ferozmente”. Jerónimo de Sousa disse ontem que não era “candidatável”. Eu até acho que eles foram companheiros de carteira na escola primária.
Razão de ser da Quinta das Celebridades
Ontem vi pela primeira vez a Quinta das Celebridades. E, finalmente, percebeu-se tudo. José Castellllo (terá quatro Ls?) Branco disse a certa altura, espero que tenham reparado: - Devem é comprar na próxima Terça-feira a Tv7Dias, pois é lá que eu publico (já não sei o quê). - Ora, foi nesse momento que se percebeu a razão que levou a TV-I a promover este interessante programa. Foi, pois, justamente, a forma encontrada para publicitar por todo o país e arredores a minha entrevista que sai, já amanhã, na referida Tv7Dias. Obrigado José Castellllo Branco, obrigado TV-I, obrigado Marcelo por teres saído dando assim mais expectativa às emissões da quatro. Tudo concertado e programadinho por mim para que se soubesse, em todo o lado, que amanhã há uma soberba e espantosa entrevista minha. Ficam, agora, todos a saber. É comprar, é comprar para juntar ao Inventor.
Ontem vi pela primeira vez a Quinta das Celebridades. E, finalmente, percebeu-se tudo. José Castellllo (terá quatro Ls?) Branco disse a certa altura, espero que tenham reparado: - Devem é comprar na próxima Terça-feira a Tv7Dias, pois é lá que eu publico (já não sei o quê). - Ora, foi nesse momento que se percebeu a razão que levou a TV-I a promover este interessante programa. Foi, pois, justamente, a forma encontrada para publicitar por todo o país e arredores a minha entrevista que sai, já amanhã, na referida Tv7Dias. Obrigado José Castellllo Branco, obrigado TV-I, obrigado Marcelo por teres saído dando assim mais expectativa às emissões da quatro. Tudo concertado e programadinho por mim para que se soubesse, em todo o lado, que amanhã há uma soberba e espantosa entrevista minha. Ficam, agora, todos a saber. É comprar, é comprar para juntar ao Inventor.
domingo, 10 de outubro de 2004
Sports
Queria criar uma brevíssima e episódica secção desportiva no Miniscente (até porque as minhas águias vão de vento em popa. É aproveitar…). Mas o problema é mesmo o nome da dita secção. Ando indeciso entre O folar cativo, O rogar cativo, O esfolar cativo, O luar cativo, O jogar cativo, ou ainda, noutra óptica, A facada central, A piada central, A estopada central, A bicada central, A maçada central ou A camada central. Espero que os leitores me ajudem a resolver este grave e intricadíssimo problema. Mas, para já, a primeira nota era esta: a selecção nacional lá conseguiu empatar no Liechtenstein, embora tivesse marcado apenas um golo e o resultado final fosse 2 a 2. Diferendos matemáticos. Tendo em conta que o jogo foi fora de casa e que o frio naquelas paragens é já um factor de peso evidente, penso que estamos todos de parabéns. Scolari até bateu palmas, no momento em que o árbitro deu por concluído o disputadíssimo desafio. Madaíl, já no aeroporto, abriu a camisa de cores hawaianas e disse viriato em voz baixa. Eu ouvi. E senti-me ainda mais português. Tanto como os bloquistas do IP.
Queria criar uma brevíssima e episódica secção desportiva no Miniscente (até porque as minhas águias vão de vento em popa. É aproveitar…). Mas o problema é mesmo o nome da dita secção. Ando indeciso entre O folar cativo, O rogar cativo, O esfolar cativo, O luar cativo, O jogar cativo, ou ainda, noutra óptica, A facada central, A piada central, A estopada central, A bicada central, A maçada central ou A camada central. Espero que os leitores me ajudem a resolver este grave e intricadíssimo problema. Mas, para já, a primeira nota era esta: a selecção nacional lá conseguiu empatar no Liechtenstein, embora tivesse marcado apenas um golo e o resultado final fosse 2 a 2. Diferendos matemáticos. Tendo em conta que o jogo foi fora de casa e que o frio naquelas paragens é já um factor de peso evidente, penso que estamos todos de parabéns. Scolari até bateu palmas, no momento em que o árbitro deu por concluído o disputadíssimo desafio. Madaíl, já no aeroporto, abriu a camisa de cores hawaianas e disse viriato em voz baixa. Eu ouvi. E senti-me ainda mais português. Tanto como os bloquistas do IP.
Morreu Derrida
Morreu Derrida. Um dos maiores pensadores do século XX e do fulgurante início do século XXI. Com ele, as margens continentais e anglo-saxónicas estreitaram-se e as oscilações desestruturadoras do nosso edifício cultural comum viram-se ao espelho de outro modo e com uma renovada empatia positiva. Está na moda dizer mal do que cheira a francês, embora quem o pratique se recuse sobretudo a ler e a informar-se. Mas neste caso, deveria essa moda ter um pouco mais de cuidado. Até porque estamos a falar de um autor híbrido, multifacetado, amante do universo, nas suas facetas mais variadas.
Criador das práticas significativas designadas por desconstrução, G. Derrida nasceu em El-Biar (Argélia) no ano de 1930. Frequentou o liceu na sua terra natal e em Argel. Acaba o ensino secundário já em Paris e aí frequenta a École Normale Supérieure. Em 1954, publica Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl e, dois anos depois, passa pela Universidade de Harvard como special auditor. Até ao fim dos anos cinquenta, cumpre o serviço militar na Argélia e dá aulas num liceu de Le Mans. Em 1960, entra na Sorbonne, escreve em revistas como Critique e Tel Quel, e torna-se investigador no quadro do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS).
Em 1967, publica três obras capitais: De la Grammatologie, livro-chave na crítica à metafísica saussureana, L´Écriture et la différence e La Voix et le Phénomène, obra importante no diálogo com a semiótica de Husserl (na sequência de L´Origine de la géometrie, 1962). Cinco anos mais tarde, em 1972, vê de novo publicados três livros importantes: La Dissémination, Marges de la philosophie, onde surge a noção de “différance” e se aprofunda a crítica a F. Saussure e ao pragmatic turn e, ainda, Positions. O ritmo de publicação manter-se-á vertiginoso ao longo dos anos. Em 1974, sai a público o famoso Glas e, em 1980, a sua tese, La carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, é igualmente publicada. No início da década de oitenta, após breve passagem pela Universidade de Cornel (1982), funda o Collège International de Philosophie.
Já nos anos noventa, deve ser dada referência, entre muitas outras obras, a Sauf le Nom (1993), onde é abordada a questão da teologia negativa; Khôra (1993), ou a ideia de um “terceiro género” alternativo ao sensível e ao inteligível; Politiques de l´amitié (1994) que situa a chamada ‘viragem ética’ e que tem uma parte dedicada a Heidegger; Le monolinguisme de l´autre (1996), onde o autor funde o seu próprio percurso e hibridez com a questão da traductibilidade das línguas (aliás, nesse desígnio, aproximando-se da poética de Voiles, escrito, em 1999, a caminho da Argentina e em várias cidades da América Latina, em colaboração com H. Cixous).
Director de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, desde 1983, G. Derrida é um cultor do texto, mas não no sentido em que possa entender-se que o mundo é, todo ele, um texto. Sê-lo-á, sim, mas apenas na medida em que toda a estruturação (ou desestruturação) é sempre algo próprio a toda a estrutura, seja ela de que natureza for. É neste sentido que se pode afirmar que não existe nada no mundo que possa, de facto, ser concebido como sendo exterior ao texto. Porque sendo um texto sempre estruturado, nada nele consegue resistir a uma operação insistente e cuidadosa que vise descoser e desconjuntar as peças que o estruturam. E isso já é, ou já seria, desconstruir.
Por outras palavras, se significar é apreender, quer pela via da compreensão, quer pela via da extensão, então este mesmo movimento de duas vias pode ser efectuado quer de modo construtivo, quer de modo desconstrutivo, isto é, cosendo as peças de um enunciado, ou desmontando-as. Nesta medida, um texto é sempre uma peça de cultura e uma cultura, ou uma instituição, pode sempre ser desconstruída. E nada existe fora da possibilidade deste movimento, devido a uma razão essencial: a defesa radical que J. Derrida faz da ausência de um significado último.
Morreu Derrida. Um dos maiores pensadores do século XX e do fulgurante início do século XXI. Com ele, as margens continentais e anglo-saxónicas estreitaram-se e as oscilações desestruturadoras do nosso edifício cultural comum viram-se ao espelho de outro modo e com uma renovada empatia positiva. Está na moda dizer mal do que cheira a francês, embora quem o pratique se recuse sobretudo a ler e a informar-se. Mas neste caso, deveria essa moda ter um pouco mais de cuidado. Até porque estamos a falar de um autor híbrido, multifacetado, amante do universo, nas suas facetas mais variadas.
Criador das práticas significativas designadas por desconstrução, G. Derrida nasceu em El-Biar (Argélia) no ano de 1930. Frequentou o liceu na sua terra natal e em Argel. Acaba o ensino secundário já em Paris e aí frequenta a École Normale Supérieure. Em 1954, publica Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl e, dois anos depois, passa pela Universidade de Harvard como special auditor. Até ao fim dos anos cinquenta, cumpre o serviço militar na Argélia e dá aulas num liceu de Le Mans. Em 1960, entra na Sorbonne, escreve em revistas como Critique e Tel Quel, e torna-se investigador no quadro do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS).
Em 1967, publica três obras capitais: De la Grammatologie, livro-chave na crítica à metafísica saussureana, L´Écriture et la différence e La Voix et le Phénomène, obra importante no diálogo com a semiótica de Husserl (na sequência de L´Origine de la géometrie, 1962). Cinco anos mais tarde, em 1972, vê de novo publicados três livros importantes: La Dissémination, Marges de la philosophie, onde surge a noção de “différance” e se aprofunda a crítica a F. Saussure e ao pragmatic turn e, ainda, Positions. O ritmo de publicação manter-se-á vertiginoso ao longo dos anos. Em 1974, sai a público o famoso Glas e, em 1980, a sua tese, La carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, é igualmente publicada. No início da década de oitenta, após breve passagem pela Universidade de Cornel (1982), funda o Collège International de Philosophie.
Já nos anos noventa, deve ser dada referência, entre muitas outras obras, a Sauf le Nom (1993), onde é abordada a questão da teologia negativa; Khôra (1993), ou a ideia de um “terceiro género” alternativo ao sensível e ao inteligível; Politiques de l´amitié (1994) que situa a chamada ‘viragem ética’ e que tem uma parte dedicada a Heidegger; Le monolinguisme de l´autre (1996), onde o autor funde o seu próprio percurso e hibridez com a questão da traductibilidade das línguas (aliás, nesse desígnio, aproximando-se da poética de Voiles, escrito, em 1999, a caminho da Argentina e em várias cidades da América Latina, em colaboração com H. Cixous).
Director de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, desde 1983, G. Derrida é um cultor do texto, mas não no sentido em que possa entender-se que o mundo é, todo ele, um texto. Sê-lo-á, sim, mas apenas na medida em que toda a estruturação (ou desestruturação) é sempre algo próprio a toda a estrutura, seja ela de que natureza for. É neste sentido que se pode afirmar que não existe nada no mundo que possa, de facto, ser concebido como sendo exterior ao texto. Porque sendo um texto sempre estruturado, nada nele consegue resistir a uma operação insistente e cuidadosa que vise descoser e desconjuntar as peças que o estruturam. E isso já é, ou já seria, desconstruir.
Por outras palavras, se significar é apreender, quer pela via da compreensão, quer pela via da extensão, então este mesmo movimento de duas vias pode ser efectuado quer de modo construtivo, quer de modo desconstrutivo, isto é, cosendo as peças de um enunciado, ou desmontando-as. Nesta medida, um texto é sempre uma peça de cultura e uma cultura, ou uma instituição, pode sempre ser desconstruída. E nada existe fora da possibilidade deste movimento, devido a uma razão essencial: a defesa radical que J. Derrida faz da ausência de um significado último.
sábado, 9 de outubro de 2004
Notícias com fonte blogosférica
Isto está a aquecer. Um famoso “Anaximandro” revela agora as démarches (em tudo legítimas) de Mário Miranda Duarte, assessor de Santana Lopes, que, segundo parece, terá dado corpo à vontade do governo em saber, junto de algumas embaixadas, se, nos respectivos países, também havia algum Marcelo a devorar quase uma hora de comentário político semanal. Terá sido por via desse trabalho de casa que o Ministro dos Assuntos Parlamentares foi tão peremptório, a 4 de Outubro, quando afirmou, de modo eriçado e meladamente hirsuto, que o caso Marcelo era único em toda a Europa e desprovido, ainda por cima, daquela coisa designada, ridiculamente, por “contraditório”. Uma voragem de verdadeiro mal estar parece estar agora mesmo a cruzar os corredores diplomáticos da capital. Um transtorno dos diabos. E Santana prepara-se já, zangadinho e com aquele jeito de quem não dá oportunidades ao silêncio, para falar à nação. Há malta, de facto, que passa o tempo a brincar (afinal o circo e o Quim Barreiros não são coisas apenas da Madeira). É o que nos vale.
Isto está a aquecer. Um famoso “Anaximandro” revela agora as démarches (em tudo legítimas) de Mário Miranda Duarte, assessor de Santana Lopes, que, segundo parece, terá dado corpo à vontade do governo em saber, junto de algumas embaixadas, se, nos respectivos países, também havia algum Marcelo a devorar quase uma hora de comentário político semanal. Terá sido por via desse trabalho de casa que o Ministro dos Assuntos Parlamentares foi tão peremptório, a 4 de Outubro, quando afirmou, de modo eriçado e meladamente hirsuto, que o caso Marcelo era único em toda a Europa e desprovido, ainda por cima, daquela coisa designada, ridiculamente, por “contraditório”. Uma voragem de verdadeiro mal estar parece estar agora mesmo a cruzar os corredores diplomáticos da capital. Um transtorno dos diabos. E Santana prepara-se já, zangadinho e com aquele jeito de quem não dá oportunidades ao silêncio, para falar à nação. Há malta, de facto, que passa o tempo a brincar (afinal o circo e o Quim Barreiros não são coisas apenas da Madeira). É o que nos vale.
Resort, retail, entrega devoradora
e o mau tempo chegou... sem dizer água vai água vem
O antigo olhar dos nómadas era caleidoscópico, porque conhecedor de entrepostos, festos (caminhos entre bacias hidrográficas) e áreas abertas. A sedentarização refundou-nos a alma em locais prescritos que se unem por vias, traços e linhas muito determinadas. Essa redoma onde circulamos concede-nos a ilusão do conhecimento integral do espaço, da paisagem e das suas compactas redes de trajectos. Transformámos assim a virtualidade do espaço em simples lugares. E, hoje, subitamente, reinventamo-los como meras passagens, artefactos repetitivos e interfaces vocacionados sobretudo para o anonimato massificado. O antípoda dos nómadas, mas seguindo-lhes sempre a sombra nostálgica, aparentemente errante e remota. Daí o sacrossanto turismo, a ilusão do espírito radical, os nexos ecologicamente correctos, a evocação do romantismo Kerouac ou flâneur e a apetência pela evasão dandy e best seller que saiba a exótico, a insondável ou a misticamente transfigurador. Tudo o que nos liberte da exiguidade do lugar (ou do não-lugar) e nos dê a ilusão de mobilidade infinita no espaço físico ou imaginário é produto pronto a vender. É esse o novo nome do sucesso. Só não o tem quem não quer. That´s the big resort. Devorador. Cada vez mais.
e o mau tempo chegou... sem dizer água vai água vem
O antigo olhar dos nómadas era caleidoscópico, porque conhecedor de entrepostos, festos (caminhos entre bacias hidrográficas) e áreas abertas. A sedentarização refundou-nos a alma em locais prescritos que se unem por vias, traços e linhas muito determinadas. Essa redoma onde circulamos concede-nos a ilusão do conhecimento integral do espaço, da paisagem e das suas compactas redes de trajectos. Transformámos assim a virtualidade do espaço em simples lugares. E, hoje, subitamente, reinventamo-los como meras passagens, artefactos repetitivos e interfaces vocacionados sobretudo para o anonimato massificado. O antípoda dos nómadas, mas seguindo-lhes sempre a sombra nostálgica, aparentemente errante e remota. Daí o sacrossanto turismo, a ilusão do espírito radical, os nexos ecologicamente correctos, a evocação do romantismo Kerouac ou flâneur e a apetência pela evasão dandy e best seller que saiba a exótico, a insondável ou a misticamente transfigurador. Tudo o que nos liberte da exiguidade do lugar (ou do não-lugar) e nos dê a ilusão de mobilidade infinita no espaço físico ou imaginário é produto pronto a vender. É esse o novo nome do sucesso. Só não o tem quem não quer. That´s the big resort. Devorador. Cada vez mais.
sexta-feira, 8 de outubro de 2004
Redenção portuguesa
E hoje... chegou o mau tempo
Na rentrée política, vários foram os temas e anátemas que percorreram a nossa dispersa atenção. Falou-se de tudo: professores, raptos, feiras, calor, para além das inimagináveis tramas terroristas. Mas sobressaiu a isso tudo, na nossa pequena terra paroquial, esse estigma quase divinal que dá pelo nome de teleponto. Lembro-me de me apavorar face a esse travelling letrado a estibordo que me acompanhou em algumas gravações televisivas.
Seja como for, não é o teleponto que me apavora, já que ele é um mero substituto do papel escrito que os políticos dos sixties liam escorridos em suor, expostos que estavam às luzes intensas dos estúdios. O que me perturba profundamente é a vontade de que tudo tenha que sair perfeito, harmonioso, integral, absoluto e sem quaisquer falhas. A vida não é assim; a vida não é ilesa aos envolvimentos de um certo caos. E a política também não pode ser uma coisa estriada, forçada e dissimuladamente perfectível.
É verdade que rodopiar a realidade, ficcionalizar e simular são coisas normais no globário tecnológico em que vivemos hoje em dia. Mas querer pintar de cor-de-rosa e cobrir com verniz o inapelável é tarefa para o supremo altar do kitsch. E esse é o padrão que Sócrates, feliz ou infelizmente, se prepara para trazer à cena política portuguesa.
Guterres era um católico de crença, tinha um discurso que se modelava às adversidades e projectava, sobretudo nos primeiros anos, um certo querer reformador. Sócrates não é um homem de crença; é antes um simulacro de autoridade e um apontador de causas, mas é-o sob o manto de uma redenção sorridente, açucarada e a extravasar de coerência compulsiva.
De resto, era ele o único homem que o PS tinha para o poder. Um verdadeiro mal menor. Alegre e o filho de Soares seriam sempre estigmas políticos muito fáceis para a direita. E por isso limitaram-se a repetir palavras de ordem e pregões batidos que agradavam ao calvário de outros tempos. Por isso limitaram-se a ser a espuma esbranquiçada de um tempo excessivamente demorado e quase estival que foi o das primeiras primárias portuguesas.
Faça-se, de qualquer maneira, justiça à discussão aberta e plural que o PS desenvolveu nesta rentrée política. Pois, por contraste, já todos sabemos o que vão ser os congressos que se avizinham: no PSD, uma consagração maioritária com vozes de Basto a emprestar dissonância à sinfonia e, no PCP, a via dolorosa de uma Jerusalém celeste já sem salvador, nem profeta, nem missal. Do PP nada sei, embora creia que os casaquinhos azuis e as gravatas coloridas deverão, também, ouvir-se uns aos outros, algures, em data incerta.
É provável que as eleições legislativas consigam esperar por nós até 2006. De resto, o calendário das autárquicas aperta o cerco a outras possibilidades. Mas o bizarro esquema do Ministério da Educação, o expediente Marcelo, assim como a resistência a algumas medidas, com desideratos legítimos aqui e ali, caso das taxas moderadoras, lei do arrendamento e do pagador-utilizador nas auto-estradas, podem inflectir o ciclo mais cedo do que afinal se esperava. E a música dos socráticos pode, por implosão alheia, ter que entrar em palco de modo porventura prematuro.
Não sei se é essa a redenção que o país precisa. Gosto de duvidar. Mas todos sabemos que há mudanças urgentes que Portugal necessita há décadas. Há séculos. E sabemos muito bem quais são. Administração pública, domínio fiscal, educação e saúde. Não sou grande entusiasta dos processos de regionalização, nem particularmente nacionalista à moda republicana. E creio mesmo que todos temos a ganhar cada vez mais com uma progressiva e decisiva integração no magma político, social e económico da Europa.
A nossa afirmação na globalização passa pelo diálogo a esse macro-nível e não pela triste perpetuação da retórica intestina e umbilical que tem dado aos portugueses, geração após geração, uma auto-imagem frágil, cândida e às vezes até liliputiana. Hoje em dia, a soberania não tem fronteiras terrestres; tem sim fronteiras mundializadas onde agem causas e meios capazes de fazer recuar o terrorismo, as terríveis desigualdades económicas e as ameaças à liberdade.
Sem esta compreensão não há teleponto que resista.
E hoje... chegou o mau tempo
Na rentrée política, vários foram os temas e anátemas que percorreram a nossa dispersa atenção. Falou-se de tudo: professores, raptos, feiras, calor, para além das inimagináveis tramas terroristas. Mas sobressaiu a isso tudo, na nossa pequena terra paroquial, esse estigma quase divinal que dá pelo nome de teleponto. Lembro-me de me apavorar face a esse travelling letrado a estibordo que me acompanhou em algumas gravações televisivas.
Seja como for, não é o teleponto que me apavora, já que ele é um mero substituto do papel escrito que os políticos dos sixties liam escorridos em suor, expostos que estavam às luzes intensas dos estúdios. O que me perturba profundamente é a vontade de que tudo tenha que sair perfeito, harmonioso, integral, absoluto e sem quaisquer falhas. A vida não é assim; a vida não é ilesa aos envolvimentos de um certo caos. E a política também não pode ser uma coisa estriada, forçada e dissimuladamente perfectível.
É verdade que rodopiar a realidade, ficcionalizar e simular são coisas normais no globário tecnológico em que vivemos hoje em dia. Mas querer pintar de cor-de-rosa e cobrir com verniz o inapelável é tarefa para o supremo altar do kitsch. E esse é o padrão que Sócrates, feliz ou infelizmente, se prepara para trazer à cena política portuguesa.
Guterres era um católico de crença, tinha um discurso que se modelava às adversidades e projectava, sobretudo nos primeiros anos, um certo querer reformador. Sócrates não é um homem de crença; é antes um simulacro de autoridade e um apontador de causas, mas é-o sob o manto de uma redenção sorridente, açucarada e a extravasar de coerência compulsiva.
De resto, era ele o único homem que o PS tinha para o poder. Um verdadeiro mal menor. Alegre e o filho de Soares seriam sempre estigmas políticos muito fáceis para a direita. E por isso limitaram-se a repetir palavras de ordem e pregões batidos que agradavam ao calvário de outros tempos. Por isso limitaram-se a ser a espuma esbranquiçada de um tempo excessivamente demorado e quase estival que foi o das primeiras primárias portuguesas.
Faça-se, de qualquer maneira, justiça à discussão aberta e plural que o PS desenvolveu nesta rentrée política. Pois, por contraste, já todos sabemos o que vão ser os congressos que se avizinham: no PSD, uma consagração maioritária com vozes de Basto a emprestar dissonância à sinfonia e, no PCP, a via dolorosa de uma Jerusalém celeste já sem salvador, nem profeta, nem missal. Do PP nada sei, embora creia que os casaquinhos azuis e as gravatas coloridas deverão, também, ouvir-se uns aos outros, algures, em data incerta.
É provável que as eleições legislativas consigam esperar por nós até 2006. De resto, o calendário das autárquicas aperta o cerco a outras possibilidades. Mas o bizarro esquema do Ministério da Educação, o expediente Marcelo, assim como a resistência a algumas medidas, com desideratos legítimos aqui e ali, caso das taxas moderadoras, lei do arrendamento e do pagador-utilizador nas auto-estradas, podem inflectir o ciclo mais cedo do que afinal se esperava. E a música dos socráticos pode, por implosão alheia, ter que entrar em palco de modo porventura prematuro.
Não sei se é essa a redenção que o país precisa. Gosto de duvidar. Mas todos sabemos que há mudanças urgentes que Portugal necessita há décadas. Há séculos. E sabemos muito bem quais são. Administração pública, domínio fiscal, educação e saúde. Não sou grande entusiasta dos processos de regionalização, nem particularmente nacionalista à moda republicana. E creio mesmo que todos temos a ganhar cada vez mais com uma progressiva e decisiva integração no magma político, social e económico da Europa.
A nossa afirmação na globalização passa pelo diálogo a esse macro-nível e não pela triste perpetuação da retórica intestina e umbilical que tem dado aos portugueses, geração após geração, uma auto-imagem frágil, cândida e às vezes até liliputiana. Hoje em dia, a soberania não tem fronteiras terrestres; tem sim fronteiras mundializadas onde agem causas e meios capazes de fazer recuar o terrorismo, as terríveis desigualdades económicas e as ameaças à liberdade.
Sem esta compreensão não há teleponto que resista.
quinta-feira, 7 de outubro de 2004
Bondades e doidades
No meio desta panóplia tão portuguesa, no meio desta melopeia lusa tão alface com tomate, tão viscosa e manjeriqueira, tão desgarradamente camiliana com um dedinho inocente do Frei Luís de Sousa desaparecido, tão à Cavaleiro de Oliveira com acenos de balaustradas novas ricas das terras de Basto, tão ao jeito da sopa de pedra paroquial e arrufadamente calculista, pergunto eu (que sou ingénuo e prolixo no fundo insaciado da minha curiosidade): quem é, afinal, esse senhor Rui Gomes da Silva?
Será também "professor", ou apenas "Silva"? Ou as duas coisas? Ou nenhuma ? Ou nada? Ou o quê em vez de nada?
Fica a pergunta para uma resposta simples, imediata e inteligente.
No meio desta panóplia tão portuguesa, no meio desta melopeia lusa tão alface com tomate, tão viscosa e manjeriqueira, tão desgarradamente camiliana com um dedinho inocente do Frei Luís de Sousa desaparecido, tão à Cavaleiro de Oliveira com acenos de balaustradas novas ricas das terras de Basto, tão ao jeito da sopa de pedra paroquial e arrufadamente calculista, pergunto eu (que sou ingénuo e prolixo no fundo insaciado da minha curiosidade): quem é, afinal, esse senhor Rui Gomes da Silva?
Será também "professor", ou apenas "Silva"? Ou as duas coisas? Ou nenhuma ? Ou nada? Ou o quê em vez de nada?
Fica a pergunta para uma resposta simples, imediata e inteligente.
Count down
Começou o fim da coligação. O caso Marcelo abre a grande fissura na maioria e tem, de um lado, a desprevenida e irresponsável arrogância populista e, do outro lado, o malabarismo inteligente e requintado. Pelo meio, há interesses; só não vê quem não quer. O resto é demagogia e o habitual rol de augúrios, muitos deles legítimos. As causas, essas, já andam ao vento há um tempão. Seja como for, tenho pena de deixar de ver o Marcelo aos Domingos.
Começou o fim da coligação. O caso Marcelo abre a grande fissura na maioria e tem, de um lado, a desprevenida e irresponsável arrogância populista e, do outro lado, o malabarismo inteligente e requintado. Pelo meio, há interesses; só não vê quem não quer. O resto é demagogia e o habitual rol de augúrios, muitos deles legítimos. As causas, essas, já andam ao vento há um tempão. Seja como for, tenho pena de deixar de ver o Marcelo aos Domingos.
terça-feira, 5 de outubro de 2004
O Inventor de Lágrimas: alguns comentários
Com as primeiras reacções ao meu novo romance, começo, eu também, como sempre, a construir o meu mapa de comentários interpretativos. É esta a segunda vida de um livro, já que a primeira, no seu silêncio construtivo, se encerra na surda luta entre o plano, a agenda, ou o modelo abstracto da trama e a mais brusca e incontrolável imprevisibilidade. É claro que os motivos plásticos e poéticos se apagam na maioria dos comentários, embora, sejam eles, para mim, o que de mais fundamental luz na arte (ainda que esta arte em particular, a literária, seja uma arte que fala e,portanto, uma arte que nasce da enunciação de relatos e da narração memorial e mítica). Vamos aos três comentários que hoje me ocorrem:
Um boomerang de tentações. Depois de algumas leituras que me foram dadas a conhecer, concluí que o romance tem como tema fundamental a tentação. Primeiro, o protagonista é tentado e, depois, é ele mesmo quem tenta os que lhe são mais próximos. O sistema criado por esta rede de tentações, que todos aceitam e acatam, acaba por se virar contra o protagonista. Nessa altura, ele é levado a praticar o inimaginável e foge, desaparece, escapa radicalmente ao mundo. No entanto, este puro acossado há-de acabar por receber do destino um generoso presente sob a forma de happy-end. Não como se espera, mas como se deseja.
Vidas mundivivendes ou cosmopolitas e vidas correntes ou comuns: as riquezas e as pobrezas de ambas. Numa sociedade pré-moderna ambas coincidiam, já que as aspirações humanas tinham que caber apenas numa vida muito simples, encarada como mero trânsito divino e destinada a negar qualquer curiosidade humana. No tempo em que o romance se move, o tempo actual, sabe-se que tudo, em teoria, pode acontecer na vida, incluindo ser-se herói. A ilusão deixa de ser a redenção divina para passar a ser a própria possibilidade de ser herói. Mas ser-se herói, hoje em dia, não é o mesmo que ter sido herói romântico ou anti-herói contracultural na modernidade do século XX. Ser-se herói, hoje em dia, passa pela partilha dos fluxos que a euforia global propõe, i.e., ter a sensação de que se está em todo o lado ao mesmo tempo, devorar os acontecimentos que resultam da euforia dos média, hipnotizar-se com a aceleração das imagens (ter que ver sem ver) e consumir mais objectos culturais do que aqueles que se pode ter. Mas muito mais herói se é, se se conseguir inventar factos que alterem a realidade no meio desta partilha geral que é, ela própria, extremamente inventiva, ilusória e sobretudo compulsiva. É essa a tarefa primordial de Júlio Caldas, o protagonista deste meu novo romance.
A espera. Lutar pela felicidade e pelo cumprimento de desejos e augúrios implica uma certa dose de fé. Mas, muitas vezes, este tipo de expectativas paga-se caro. Foi assim que se passou com a espera (oitocentista e novecentista) pelo paraíso ou pelas sociedades perfeitas. O tempo de espera é, em muitos casos, um tempo de preenchimento em que a loucura acaba por tomar a palavra da forma mais normal e bizarra. O que acontece a Júlio Caldas, o protagonista do romance, entre o fim da adolescência e o culminar das aventuras relatadas no romance, é, no fundo, uma longa espera. Ele espera sempre por alguém, ainda que irreflectida e involuntariamente. E é a espera que o há-de conduzir ao delírio e à mais desprevenida surpresa já no final.
Com as primeiras reacções ao meu novo romance, começo, eu também, como sempre, a construir o meu mapa de comentários interpretativos. É esta a segunda vida de um livro, já que a primeira, no seu silêncio construtivo, se encerra na surda luta entre o plano, a agenda, ou o modelo abstracto da trama e a mais brusca e incontrolável imprevisibilidade. É claro que os motivos plásticos e poéticos se apagam na maioria dos comentários, embora, sejam eles, para mim, o que de mais fundamental luz na arte (ainda que esta arte em particular, a literária, seja uma arte que fala e,portanto, uma arte que nasce da enunciação de relatos e da narração memorial e mítica). Vamos aos três comentários que hoje me ocorrem:
Um boomerang de tentações. Depois de algumas leituras que me foram dadas a conhecer, concluí que o romance tem como tema fundamental a tentação. Primeiro, o protagonista é tentado e, depois, é ele mesmo quem tenta os que lhe são mais próximos. O sistema criado por esta rede de tentações, que todos aceitam e acatam, acaba por se virar contra o protagonista. Nessa altura, ele é levado a praticar o inimaginável e foge, desaparece, escapa radicalmente ao mundo. No entanto, este puro acossado há-de acabar por receber do destino um generoso presente sob a forma de happy-end. Não como se espera, mas como se deseja.
Vidas mundivivendes ou cosmopolitas e vidas correntes ou comuns: as riquezas e as pobrezas de ambas. Numa sociedade pré-moderna ambas coincidiam, já que as aspirações humanas tinham que caber apenas numa vida muito simples, encarada como mero trânsito divino e destinada a negar qualquer curiosidade humana. No tempo em que o romance se move, o tempo actual, sabe-se que tudo, em teoria, pode acontecer na vida, incluindo ser-se herói. A ilusão deixa de ser a redenção divina para passar a ser a própria possibilidade de ser herói. Mas ser-se herói, hoje em dia, não é o mesmo que ter sido herói romântico ou anti-herói contracultural na modernidade do século XX. Ser-se herói, hoje em dia, passa pela partilha dos fluxos que a euforia global propõe, i.e., ter a sensação de que se está em todo o lado ao mesmo tempo, devorar os acontecimentos que resultam da euforia dos média, hipnotizar-se com a aceleração das imagens (ter que ver sem ver) e consumir mais objectos culturais do que aqueles que se pode ter. Mas muito mais herói se é, se se conseguir inventar factos que alterem a realidade no meio desta partilha geral que é, ela própria, extremamente inventiva, ilusória e sobretudo compulsiva. É essa a tarefa primordial de Júlio Caldas, o protagonista deste meu novo romance.
A espera. Lutar pela felicidade e pelo cumprimento de desejos e augúrios implica uma certa dose de fé. Mas, muitas vezes, este tipo de expectativas paga-se caro. Foi assim que se passou com a espera (oitocentista e novecentista) pelo paraíso ou pelas sociedades perfeitas. O tempo de espera é, em muitos casos, um tempo de preenchimento em que a loucura acaba por tomar a palavra da forma mais normal e bizarra. O que acontece a Júlio Caldas, o protagonista do romance, entre o fim da adolescência e o culminar das aventuras relatadas no romance, é, no fundo, uma longa espera. Ele espera sempre por alguém, ainda que irreflectida e involuntariamente. E é a espera que o há-de conduzir ao delírio e à mais desprevenida surpresa já no final.
segunda-feira, 4 de outubro de 2004
Notas avulsas
Ontem deixei Mértola de barco antes do pôr do sol. O maior enigma que me acompanhou foi o ritmo da paisagem e não tanto o deslumbramento que apenas existe para não ser nomeado, já que ele é, digamo-lo por palavras simples, pura comoção.
Em Guimarães, o melhor discurso foi o de Jaime Gama e o melhor golo o de Geovanni. Sem ironia.
A atitude das pontes "S.L." é em tudo o oposto da gravidade cavaquista e do anti-tanguismo barrosista. A malta gosta, a malta tem. Hoje, passei com o cão à porta de uma Escola Preparatória que tinha a porta fechada e um escrito nela colado que aludia à ponte. E pergunteí ao Ulisses (é o nome do cão): - a república tem dois dias de feriado? - E o bicho respondeu-me que Sim. Claro!
Às vezes, é horrível cair dentro de um noticiário em directo e ter que falar da intriga do meu último romance em escassos segundos. Como se se esperasse de mim a função de relator. Apenas sei que a anatomia de um romance transcende radicalmente o argumento que nele se passeia. Mas um escritor tem que... aparecer e falar. Mesmo que só diga Blá Blá Blu Blu! Ossos do ofício. Aparecer para ser.
Qual é a diferença entre uma ponte S.L. e uma greve da Inter? São ambas como as SCUTs. e ambas representam o que não são. A malta gosta, a malta tem.
Outubro nasceu como o seu antecedente Setembro. Em beleza, cheio de sol e a prometer o Verão perpétuo. Assim seja!
Ontem deixei Mértola de barco antes do pôr do sol. O maior enigma que me acompanhou foi o ritmo da paisagem e não tanto o deslumbramento que apenas existe para não ser nomeado, já que ele é, digamo-lo por palavras simples, pura comoção.
Em Guimarães, o melhor discurso foi o de Jaime Gama e o melhor golo o de Geovanni. Sem ironia.
A atitude das pontes "S.L." é em tudo o oposto da gravidade cavaquista e do anti-tanguismo barrosista. A malta gosta, a malta tem. Hoje, passei com o cão à porta de uma Escola Preparatória que tinha a porta fechada e um escrito nela colado que aludia à ponte. E pergunteí ao Ulisses (é o nome do cão): - a república tem dois dias de feriado? - E o bicho respondeu-me que Sim. Claro!
Às vezes, é horrível cair dentro de um noticiário em directo e ter que falar da intriga do meu último romance em escassos segundos. Como se se esperasse de mim a função de relator. Apenas sei que a anatomia de um romance transcende radicalmente o argumento que nele se passeia. Mas um escritor tem que... aparecer e falar. Mesmo que só diga Blá Blá Blu Blu! Ossos do ofício. Aparecer para ser.
Qual é a diferença entre uma ponte S.L. e uma greve da Inter? São ambas como as SCUTs. e ambas representam o que não são. A malta gosta, a malta tem.
Outubro nasceu como o seu antecedente Setembro. Em beleza, cheio de sol e a prometer o Verão perpétuo. Assim seja!
sábado, 2 de outubro de 2004
País provinciano. Ponto final.
Eles dão a notícia (logo no Expresso da meia noite) e, nos telejornais que se seguem, a dita transforma-se de imediato na categoria de facto. Sem mais nem menos, um "pacto secretíssimo" chega assim desprevenidamente ao conhecimento público. Depois, ascende, de modo meteórico, a coisa real comprovada por trezentas e duas fontes. Por fim, passadas umas horas - o sono de Sexta para Sábado é redentor -, essa coisa já real converte-se em material de eleição para conjecturas e discursatas. País paroquial. País de recadinhos lulus. País da perpétua Corte na Aldeia. Prefiro o meu pátio, sinceramente.
Eles dão a notícia (logo no Expresso da meia noite) e, nos telejornais que se seguem, a dita transforma-se de imediato na categoria de facto. Sem mais nem menos, um "pacto secretíssimo" chega assim desprevenidamente ao conhecimento público. Depois, ascende, de modo meteórico, a coisa real comprovada por trezentas e duas fontes. Por fim, passadas umas horas - o sono de Sexta para Sábado é redentor -, essa coisa já real converte-se em material de eleição para conjecturas e discursatas. País paroquial. País de recadinhos lulus. País da perpétua Corte na Aldeia. Prefiro o meu pátio, sinceramente.