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terça-feira, 5 de outubro de 2004

O Inventor de Lágrimas: alguns comentários

Com as primeiras reacções ao meu novo romance, começo, eu também, como sempre, a construir o meu mapa de comentários interpretativos. É esta a segunda vida de um livro, já que a primeira, no seu silêncio construtivo, se encerra na surda luta entre o plano, a agenda, ou o modelo abstracto da trama e a mais brusca e incontrolável imprevisibilidade. É claro que os motivos plásticos e poéticos se apagam na maioria dos comentários, embora, sejam eles, para mim, o que de mais fundamental luz na arte (ainda que esta arte em particular, a literária, seja uma arte que fala e,portanto, uma arte que nasce da enunciação de relatos e da narração memorial e mítica). Vamos aos três comentários que hoje me ocorrem:

Um boomerang de tentações. Depois de algumas leituras que me foram dadas a conhecer, concluí que o romance tem como tema fundamental a tentação. Primeiro, o protagonista é tentado e, depois, é ele mesmo quem tenta os que lhe são mais próximos. O sistema criado por esta rede de tentações, que todos aceitam e acatam, acaba por se virar contra o protagonista. Nessa altura, ele é levado a praticar o inimaginável e foge, desaparece, escapa radicalmente ao mundo. No entanto, este puro acossado há-de acabar por receber do destino um generoso presente sob a forma de happy-end. Não como se espera, mas como se deseja.

Vidas mundivivendes ou cosmopolitas e vidas correntes ou comuns: as riquezas e as pobrezas de ambas. Numa sociedade pré-moderna ambas coincidiam, já que as aspirações humanas tinham que caber apenas numa vida muito simples, encarada como mero trânsito divino e destinada a negar qualquer curiosidade humana. No tempo em que o romance se move, o tempo actual, sabe-se que tudo, em teoria, pode acontecer na vida, incluindo ser-se herói. A ilusão deixa de ser a redenção divina para passar a ser a própria possibilidade de ser herói. Mas ser-se herói, hoje em dia, não é o mesmo que ter sido herói romântico ou anti-herói contracultural na modernidade do século XX. Ser-se herói, hoje em dia, passa pela partilha dos fluxos que a euforia global propõe, i.e., ter a sensação de que se está em todo o lado ao mesmo tempo, devorar os acontecimentos que resultam da euforia dos média, hipnotizar-se com a aceleração das imagens (ter que ver sem ver) e consumir mais objectos culturais do que aqueles que se pode ter. Mas muito mais herói se é, se se conseguir inventar factos que alterem a realidade no meio desta partilha geral que é, ela própria, extremamente inventiva, ilusória e sobretudo compulsiva. É essa a tarefa primordial de Júlio Caldas, o protagonista deste meu novo romance.

A espera. Lutar pela felicidade e pelo cumprimento de desejos e augúrios implica uma certa dose de fé. Mas, muitas vezes, este tipo de expectativas paga-se caro. Foi assim que se passou com a espera (oitocentista e novecentista) pelo paraíso ou pelas sociedades perfeitas. O tempo de espera é, em muitos casos, um tempo de preenchimento em que a loucura acaba por tomar a palavra da forma mais normal e bizarra. O que acontece a Júlio Caldas, o protagonista do romance, entre o fim da adolescência e o culminar das aventuras relatadas no romance, é, no fundo, uma longa espera. Ele espera sempre por alguém, ainda que irreflectida e involuntariamente. E é a espera que o há-de conduzir ao delírio e à mais desprevenida surpresa já no final.