sábado, 17 de maio de 2008

Episódios e Meteoros - 84

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Saramago e Pinto da Costa: o mesmo mito
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(crónica publicada no Expresso Online desde quinta-feira;
ver também no meu Blogue de Crónicas)
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Os mitos não são coisas do passado. Tal como as nuvens, os mitos estão sempre a reaparecer e a transformar-se. E nem sempre são encarnados por personalidades previsíveis. Por outras palavras: a mitologia passeia-se melhor em protagonistas vincados, polémicos e que dividem rebanhos como quem pega fogo a metade do mundo. O mito nada tem que ver com a razão, nem tem um rosto fixo que possa ser descrito de alto a baixo. No entanto, as pessoas precisam de mitos como o mar precisa das suas espécies. E eis como o que aparenta ser distante e mesmo irreconciliável se torna, na arena dos mitos, como algo que se aproxima quase intimamente. É por isso que Saramago e Pinto da Costa são, de algum modo, pilotos da mesma nave. Vejamos porquê:
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Fantasias históricas
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Toda a performance de Pinto da Costa é atravessada por uma pretensa questão fundacional: como se a “História” fosse uma régua rigorosamente linear, o Norte impor-se-ia ao Sul mouro e as virtudes originais de um contrastariam com as corruptelas da arraia menor (conquistada) do outro. Uma rivalidade fantasiosa que só é vista e entendida no lado de quem a imagina. No caso Saramago, a questão postulada é a ibérica. Não a Norte-Sul e fundacional, mas a que perpassa a sobrevivência do país ao longo de séculos. Para os patrioteiros e para os continuadores doentios do tempo dos “Vencidos da Vida”, a fractura voltou a expor-se. Quer Saramago, quer Pinto da Costa adoram expor as fracturas. Com grande ostensão. Diria mesmo: com algum exibicionismo.
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Apego tribal
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À ideia seminal de região, no caso de Pinto da Costa, corresponde, em Saramago, um outro tipo de região: a ideológica. Uma e outra são esquemáticas, razoavelmente a ‘preto e branco’ e tendencialmente viradas para a criação de exclusões naturais. Há sempre os “de fora” e os “de dentro” do campo que é apregoado. Um tal maniqueísmo entre os que estão “contra” e os que estão “a favor” é o alicerce, para não dizer a essência, de ambas as mitologias.
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Ressentimentos vários
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No caso Saramago, foi a idiotice de um governo de Cavaco que lhe deu o pretexto para a queixa sem fim. Precisa dela como água no deserto. Questão de marketing, como se diz em certos meios. No caso Pinto da Costa, a questão é mais endémica: o modo de afirmação do dirigente portista tem como base a necessidade de demonstrar que consegue superar uma perseguição também sem fim. E o objecto perseguidor pode variar, embora tenha que ser omnipresente e todo-poderoso: os media, Lisboa, a justiça, etc.
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Domínio dos meios
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‘Não olhar a meios’: eis um lema muito repetido. No caso do mundo futebolístico, a procissão está sempre no adro e a disputa passa por todo o lado e não apenas pelo relvado. Tudo e todos, incluindo a inércia dos tribunais, legitimam este perene estado de coisas. Em Saramago o lóbi é mais sereno… até porque a literatura se vê a si própria – agora já vai acontecendo menos, felizmente – como algo quase sagrado. Um nobel só é nobel por denotar inevitáveis qualidades e, também, por se inserir num imenso mar de influências. Nem sempre essa influência coincide com a arbitragem certa, mas avizinhar-se-á dela. Resumindo: quer Pinto da Costa, quer Saramago são hábeis nos tabuleiros dos respectivos jogos. Habilidades que transcendem (e de que modo) a natureza dos próprios jogos jogados.
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Mitos do amor
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O clímax destes vários paralelismos, caro leitor, está, de facto, na tradição mais fecunda da espécie. Repare-se: se Saramago herda o mito do amor eterno, cortês e nobre (o tabu de Inês de Castro vs. Pilar – ambas ‘não portuguesas’ – é evidente), já os folhetins de Pinto da Costa, que incendeiam o país com um fogo mais visceral e menos subtil, reflectem a tradição medieval de uma cidade onde a nobreza não podia entrar (salvo com autorização especial): o Porto. De um lado, o amor proibido e imposto como destino; do outro lado, o amor errante e popular… imposto como forma de inconformismo e de irascibilidade.
EDR
Enfim: dois Portugais, mas os mesmíssimos mitos. A mesma respiração transfigurada.