sábado, 2 de fevereiro de 2008

Episódios e Meteoros - 68

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(crónica publicada, desde quinta-feira, no Expresso Online)
(ver também no meu
blogue de crónicas)
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A crise é o maior desejo do nosso tempo
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Os tempos de crise são tempos interessantes. Quando dizemos crise, estamos a dizer o modo como percebemos a actualidade. Já lá vai o tempo em que andávamos a interrogar oráculos ou a procurar nas entrelinhas das “Escrituras” as respostas para tudo. A ideia de crise veio substituir todas essas demoras. A crise é, no fundo, um jogo de expectativas que se tenta aproximar da realidade, embora se saiba que esta é sempre mais complexa do que todas as receitas. Um jogo fascinante, por isso mesmo. Nos últimos dias, ao ler a imprensa económica, verifiquei que este fascínio se deixou impregnar, como é habitual, por visões apocalípticas.
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À partida, o diagnóstico é claro: "Afinal, estava tudo preso por arames, arames farpados de excesso de dívida varrida para debaixo dos tapetes…”. A imagem do arame farpado não esconde a “…ironia suprema: os bancos desconfiam mais dos bancos do que das empresas. Não emprestam dinheiro uns aos outros” (
Pedro Santos Guerreiros).
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Estando o mal à vista, os intérpretes passam a consagrar esta nossa época como uma espécie de ‘fim de caminho’. Faz parte do pensamento apocalíptico dividir a linha do tempo em buracos negros onde, subitamente, o gelo e fogo parecem dar conta de tudo. Repare-se: "Está assim estabelecido o cenário para os próximos anos. O petróleo passou a ser caro e as empresas não possuem margem de manobra para fazer repercutir os seus custos nos clientes finais…” (Pedro Sousa). E nada melhor do que ciclo e contraciclo para demarcar uma era: “A incerteza económica tenderá a beneficiar títulos mais líquidos e menos cíclicos" (Cristina Casalinho) e “…se em campanha presidencial vingam as promessas de política anticíclica, os défices orçamental e da balança de transacções correntes vão cortar as veleidades do sucessor ou sucessora de Bush…" (João Carlos Barradas).
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Feito o diagnóstico e definida a era apocalíptica, os nossos comentadores entretêm-se, depois, a descrever o presente. As metáforas são encantadoras e dão ênfase a imagens de um corpo doente ou das agruras da natureza.
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Tudo começa pela gordura e pelo coração: “Se olharmos para a crise espoletada pelo ‘subprime’, descortinaremos que a felicidade da gordura americana” – desenquadrada, aliás, da “realidade” – e o próprio “…coração do sistema financeiro” começaram a entrar “em colapso” (Fernando Sobral). Do coração à pneumonia vai um passo: “Uma constipação nos EUA ainda tem força para provocar uma pneumonia global” (André Macedo). Mas há quem fale mesmo em cortar os pulsos: “Numa economia altamente endividada como a portuguesa, isto são motivos suficientes para dar vontade de cortar os pulsos” (Bruno Proença).
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À volta deste corpo quase mórbido, o cenário apocalíptico é também dominado por turbulências ("Samuelson atribui em boa medida a turbulência actual ao relaxamento dos guardiães do sistema financeiro….” - Francisco Ferreira da Silva) e por tornados (“Restam as exportações que estão dependentes da economia internacional, que está no meio de um tornado" - Bruno Proença).
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Apesar da música de fundo (“China e Índia juntaram-se aos tenores, mas o ritmo continua a ser marcado pelo eixo Atlântico” - André Macedo), tudo parece apenas apontar para a depressão (“Mesmo que os Estados Unidos escapem à recessão a percepção do eleitorado é depressiva…” – João Carlos Barradas) e para a miragem (“Os próximos anos serão delicados” (…) “a criação de novos empregos na Europa é uma miragem" - Pedro Sousa).
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Já guardo religiosamente os recortes dos jornais que antecederam o início do ano 2000. Mas esta “crise” vai voltar a encher-me os arquivos. Ainda dizem que há distinção entre realidade e ficção!