quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 9

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Embora em Jean Santeuil (escrito por Proust entre 1896 e 1900), a cerveja tenha uma conotação um tanto negativa (é Mme. Laudet* que defende a honra da sua estalagem dizendo « Nous n'avons pas de bière ici. »), já na imensidão da Recherche, ela parece reluzir de outro modo. É na viagem para Balbec - em À sombra das raparigas em flor - que o herói da Recherche, acompanhado da avó, se confronta com a cerveja (embora, já antes, na sequência de um alerta de Francisca sobre uma indisposição, o próprio médico a tivesse prescrito):
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“Já havia muito que eu era sujeito a sufocações (“étouffements”), e o nosso médico, apesar da desaprovação da minha avó, que já me via a morrer alcoólico, aconselhara, além da cafeína, que me era prescrita para ajudar-me a respirar, que tomasse cerveja, champagne ou conhaque quando sentisse aproximar-se uma crise”
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“Para evitar as sufocações (“étouffements”) que me provocasse a viagem, recomendou o médico que eu tomasse no momento da partida uma boa quantidade de cerveja ou conhaque, a fim de me pôr nesse estado que ele chamava de "euforia", em que o sistema nervoso se torna momentâneamente vulnerável. ”
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“Expliquei à avó o meu mal-estar, e ela disse-me: "Vai então tomar já a cerveja ou o conhaque, se é que isso te deve assentar bem", com um tal gesto de desespero e de bondade que me lancei nos seus braços e cobri-a de beijos. E se afinal fui beber no bar do comboio, era por estar certo de que, caso não o fizesse, me viria uma sufocação (“étouffement”) muito forte, e isso penalizaria muito mais a minha avó. Quando na primeira estação voltei para o nosso compartimento, disse-lhe que muito me alegrava ir a Balbec…”
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(Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – 2/ À sombra das raparigas em flor, tradução: Mário Quintana; Edição Livros do Brasil, Lisboa, s/D, pp. resp. 69, 220/221 e 221)
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*Marcel Proust, Jean Santeuil, Bibliothèque de la Pléiade, Paris, 1971, p. 352.