quinta-feira, 21 de junho de 2007

Blogues e Meteoros - 36

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(Crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
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O Triunfo do Design - VI
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Os textos apocalípticos de Daniel são uma verdadeira enxurrada de imagens. No capítulo 7, as imagens chegam a sobrepor-se aos eventos que se relatam: “Considerava eu, na minha visão nocturna, os quatro ventos do céu precipitarem-se sobre o grande mar. Surgiram do mar quatro grandes animais, diferentes uns dos outros” (7,2-3). Esses animais fabulosos são depois descritos um a um: o primeiro “era semelhante a um leão, mas tinha asas de águia”, o segundo era “semelhante a um urso”; o terceiro era parecido a “uma pantera que tinha sobre o dorso quatro asas de ave” e, por fim, o mais “aterrador”, tinha “enormes dentes de ferro (…) e dez chifres” (7,4-8). Na narrativa, a vitória do “filho do homem” sobre as quatro “bestas” funciona como alegoria para os males da terra que, deste modo iconográfico e mágico, se vão expiando.
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Muito mais tarde, os românticos e os expressionistas também trataram as imagens por tu, mas libertaram-nas dos conceitos a que tinham estado secularmente amarradas. Os primeiros acreditaram na imaginação livre dos artistas, enquanto os segundos preferiram as visões às simples fantasias. É nesta era que liga a primeira revolução industrial à consolidação de um mundo urbano, consumista e moderno que o design cresce e amadurece.
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O design beneficiou muito desta separação entre imagens e conceitos e, de certa forma, absorveu-a como uma mais-valia única.
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Por um lado, o design pôs à prova soluções conceptuais. E fê-lo, quase sempre, com eficácia e com um grande poder de resolução. O extraordinário no design é, de facto, a sua capacidade de aplicar, aliando a funcionalidade e as respostas a problemas concretos ao antigo espaço da alegoria (a cadeira de praia que parece uma sereia). Por outras palavras: para além de encontrar soluções, o design habituou-se a criar um espaço estético no seio do qual as imagens parecem acenar a certos relatos (ou mitos) que não são narrados mas antes evocados.
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Por outro lado, os conceitos puseram à prova o design. Daí que o design tenha reconfigurado todo o nosso universo mundano: dos pequenos objectos do dia a dia aos artefactos tecnológicos, dos interfaces que difundem informação aos nossos próprios corpos e desejos.
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Esta dupla relação entre design e conceitos foi – e continua a ser – uma relação bastante elástica e flexível. E a razão é óbvia: entre ambos os campos, na chamada área do projecto, o uso das imagens passou a ser cada vez menos condicionado e instrumental. É por isso que o profeta Daniel, se vivesse no nosso tempo, já não precisava de alegorias para comunicar e revelar. Bastar-lhe-ia tão-só o design. E porquê? Porque o design tornou o mundo em imagens, cartografando-o como, no tempo dos Descobrimentos, a natureza mais selvagem se transformou num conjunto de mapas e de representações. Ao contrário de Daniel que tentava contar-nos os sonhos de Deus, o design aprendeu a viver num mundo onde conceitos e imagens, um tanto à deriva, voltaram a ser parte desse sonho.
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Mas um sonho em que todos podemos tocar. Um sonho de que todos sentimos o pulsar profundo. Um sonho que, porventura, nos redime dos espantalhos dos antigos dogmas, doutrinas e ideologias pesadas.