terça-feira, 10 de abril de 2007

Para além da cultura? - 2

(publicado no Expresso online)
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Paulo Gorjão escreveu, no passado dia 5 de Abril, um post acerca do sentido do seu blogue ("UM BLOGUE À PROCURA DE UM PROJECTO"). Terminava assim:
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"(...) a verdade é que há cerca de um ano e meio que o BLOGUÍTICA anda um pouco à deriva. Falta-lhe uma finalidade. Um propósito (...). Uma encruzilhada sobre a qual não quero, por agora, revelar pormenores."
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A questão é interessante e ultrapassa o cariz retrospectivo da história pessoal do blogger e do seu excelente Bloguítica. Paulo Gorjão começa por constatar - ao longo de mais de oito mil posts - "a existência de diversos blogues dentro de um (mesmo) blogue". Com efeito, a blogosfera - e outras escritas em rede - reatam o tipo de miscelânea de certos textos populares medievais que misturavam catecismo com heranças, prescrições morais, lendas fantásticas, alegorias e imagens exaltantes. Falta, de facto, a estes mistos expressivos aquela unidade temática que reflectiria um sentido próprio dos espistemas modernos (que religam um método a um objecto) ou das narrativas tuteladas por códigos de tipo axial. O carácter híbrido destas escritas tem a sua origem num passeio aparentemente espontâneo através das fronteiras dos géneros.
A superação da ideia estanque de género na blogosfera, tal como a codificamos ainda hoje, é o reverso de um outro aspecto que Paulo Gorjão diagnostica: a ausência de objectivos claros para aquilo que um blogue pretende - pelo menos de início - expressar ("Ao iniciar o BLOGUÍTICA não tinha nenhum objectivo definido"). É evidente que um blogue temático converge no topic que se propõe tratar, mas isso não impede (e até estimula) um tipo de transversalidade que é inevitável no meio onde a nova escrita se desenrola. Na rede, o acto de processar excede quase sempre o desígnio unívoco do método. Pode dizer-se que entre o diferido (o arquivo) e o actual (a ilusão instantanista), a escrita em rede se desdobra como um animal flexível, cujos membros não têm fim, para além de praticamente ocultarem a natureza do corpo a que pertencem. O corpo, nesta acepção, é um enunciado jamais acabado: sem princípio, meio ou fim (finalidade).
A angústia do blogger que vê o seu blogue como um misto (de episódios) pouco "focado", pouco "disciplinado" e demasiado "espontâneo" é natural. É uma angústia que faz parte de um modo mais geral - e sobretudo tradicional - de dar sentido à vida. Mas a multimodalidade da rede tenderá inevitavelmente a inscrever a sua forma e os seus moldes específicos nas escritas que processamos na rede. Porque uma coisa é pensar-se que a rede é apenas um meio (um utensílio prático e instrumental), mas outra coisa é termos a certeza de que nos exprimimos reflectindo esse meio. Aliado à Obra milenar do homem, esse "reflexo" é uma coisa que, a meados do século XVIII, diversos autores baptizaram com o nome de "cultura".
Já estaremos para além da cultura, Paulo?
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Se existisse uma epígrafe ideal para este post, ela teria sido escrito pela Carla Quevedo: "O bomba inteligente é meu, mas se o tivesse de deixar a alguém, seria àqueles que gostam de o seguir."