domingo, 29 de abril de 2007

Folhetim - 4

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
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(a ler, também, no novíssimo blogue: Folhetins e Novelas)
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«Fui depositando em diversos e dispersos lugares, primeiro no British Museum e na National Gallery, em Londres, depois na National Gallery of Art na capital norte-americana, os quadros do Fantin e dos outros, e assim estive privado deles até que reconstruí e restaurei parte deste hotel particular, cujas caves, cobertas de azulejo branco – como o corredor do quarto onde o senhor está instalado – têm portas de cofre-forte, para as guardar em caso de necessidade. Dei às minhas obras de arte espaço para respirarem e a mesma atenção que dediquei em Londres à igreja de São Sarkis, a qual mandei erigir para meu mausoléu e cenotáfio dos meus pais e em memória dos mártires arménios. O senhor sabe que, num dia só, foram massacrados muitos milhares de arménios, tentaram decapitar de vez a nossa espécie? Completei meio século nesse ano, e chorei como uma criança. Mas dos horrores que sofremos não costumo falar, nem alimento ressentimentos. Fui cidadão do mundo, sem me sentir mais ligado a Scutari, Istambul, onde nasci, ou à Arménia que só visitei depois de abandonar a vossa existência, ou mesmo a Londres onde me naturalizei britânico em mil novecentos e dois, ou a Paris e Lisboa onde nunca me cansei de viver. Nada dado a fervores religiosos, venerei dois únicos deuses: a arte e a natureza. A natureza tem uma face repelente, a bestialidade, a morte, o mau cheiro, que a arte supera mesmo quanto trata do terror ou retrata a fealdade. A arte pode ser inquietante e terrífica – como se diz que os anjos são terríficos – mas também consola e pacifica. Ignoro aliás se os anjos são terríficos, suponho que voam invisíveis, intocáveis, entre os mortos e os mortais. Uma vez que não reencarno mais e que interrompi o ciclo dos aperfeiçoamentos sucessivos, não conto aceder aos círculos deles, o que lamento sem me arrepender. Os anjos devem ter algo de assustadoramente imaterial. A natureza é mais palpável. Não que eu fosse fanático da natureza. Quando arranjei uma propriedade na Normandia nem sequer foi para lá morar, foi para mandar traçar e tratar do jardim inglês e do projecto de parque. Comecei a ocupar-me deles dois anos antes da última guerra. Instalava-me aos fins-de-semana no Normandie, então o melhor hotel de Deauville, e ia durante o dia dirigir e corrigir as soluções do meu arquitecto paisagista. Noutros fins-de-semana passeava de propósito pelo Bois de Bologne para aprender botânica e anotar nomes de arbustos e árvores que pretendia plantar, formando mentalmente o parque que sonhei ter. O que me atraía era ser eu a moldá-lo à minha maneira.
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(continua)
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Próximo episódio: “Depois do jantar ia dormir à place Vendôme na minha suite do Ritz, sozinho ou com quem me apetecia. Não por ser libertino, nem apenas pelas razões de segurança que aleguei à família.”