quinta-feira, 26 de abril de 2007

Folhetim - 1

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
MGB
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(a ler, também, no novíssimo blogue: Folhetins e Novelas)
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Só percebi que adormecera de luz acesa quando acordei de súbito e senti vacilar a luz das lâmpadas de cada lado da cama. Estremunhado, pareceu-me ouvir uns passos lentos sobre a minha cabeça. Os soalhos velhos estalam quando as temperaturas mudam, possivelmente estalaram à frialdade nocturna. Estalar sim, mas a ponto de fazer tremer as paredes? Levantei-me e, mesmo descalço, em calções de pijama, atarantado e tropeçante, caminhei até à porta do quarto, espreitei o corredor, silêncio, ninguém. Segui até à outra porta, mais larga e mais alta, que outrora separava os quartos de serviço do resto da casa. Nada, só o busto da deusa Palas Ateneia numa coluna multiplicada pelos espelhos da galeria de acesso à parte nobre da casa. Num susto de segundos convenci-me de que por cima de mim passava um bater de asas. Baixei-me instintivamente e, quando olhei em roda, deparei nos espelhos com um grotesco esgar de medo, o meu. Sob a incómoda suspeita de ter presenciado já um episódio semelhante que metia um monocórdico corvo à meia-noite, transpus o patamar de mármore, parei na escadaria oval de pedra clara e corrimão em ferro forjado a condizer com as grades do ascensor e de repente outra vez os lentos passos. Quem seria o insone às voltas àquela hora, no último andar desta mansão sem outros hóspedes?
O homem da recepção, ao entregar-me um cartão com o código da porta principal, avisara-me de que se ausentaria até segunda de manhã. A porteira e o marido, habitando na subcave, àquela distância não ouviriam nada. Talvez os passos fossem do guarda que, segundo o recepcionista, costuma descansar num canapé ao cimo da grande escadaria, junto à biblioteca. Mas o peso das pezadas era de alguém firmemente disposto a despertar um defunto.
Arriscando-me a dar de caras com ladrões - ou com uma dessas Fúrias que as trevas soltam do sótão das casas mais respeitáveis - o demónio da curiosidade empurrou-me para o andar de cima, outrora o dos aposentos privados do dono da casa. Subi vinte e sete degraus contados sem querer, até ao terceiro piso onde dei com uma porta de imponentes dimensões em madeiras trabalhadas, acesso provável a segredos excepcionais. Abri-a devagar. Num salão rectangular muito mais comprido que largo, sentado à cabeceira da mesa rodeada por uma vintena de cadeiras com costas e fundos de cabedal, à luz de um candelabro, um cavalheiro - cuja cara julguei reconhecer sem saber de onde - aguardava-me calmo e sem surpresa. A sua palidez e o seu traje antiquado, o sobretudo azul, a gravata de seda, as calças, colete e casaco cinzentos, vinham de outros tempos ou de fora do tempo.
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(continua)
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Próximo episódio: “Ele encolheu os ombros e, numa voz gutural, quase me ordenou que estivesse à vontade. Mais à vontade que isto é impossível, menti.”