quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Pré-publicações - 4

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Nikias Skapinakis, Bernardo Pinto de Almeida, Campo das Letras.
Saída a público: 29/11/06
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"1.Nikias, 55 anos depois
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O que desenha uma obra?
Quero dizer: a partir de que circunstâncias um trabalho – seja ele o de um qualquer criador e sob qualquer regime de expressão – deixa de ser um conjunto eventualmente coerente de experiências expressivas mais ou menos interessantes, para se figurar sob o nome de uma obra: aquele mesmo que, depois, torna indistinto o nome do autor daquilo de que este fez sua autoria?
O que faz, primeiramente, uma obra, por aproximação de resposta, é a presença simultânea de um conjunto de invariantes que, atravessando uma prática de criação mais ou menos longa, erige um conjunto de signos, de temáticas, ou de ambos, através dos quais se torna reconhecível um espaço singular que, desse modo, se dá a ver aos demais como um território autoral.
Não são, porém, estes signos meros tiques que se repetem, ou esses temas meras referências a outros, de sentido mais universal: nenhuma obra digna desse nome poderia dispensar-se de tocar, ao menos de aflorar, o que mais universalmente toca a todos, mesmo se isso não é, ainda, o que a distingue como tal. Trata-se, isso sim, de ser possível perscrutar nela a ocorrência de repetições que agem como formas de uma resistência, ou de uma insistência, dando-lhe uma espessura e uma materialidade que permite o seu reconhecimento. E de, concomitantemente, ser detectável nela, também como invariante, uma certa forma diferenciada de abordar as temáticas que toca, no âmbito do que, simplificando, se poderia designar como a medida de um olhar.
Para dar um exemplo simples: se é verdade que tanto Bacon quanto Lucian Freud abordaram a questão da angústia face à miséria da condição humana no processo da sua degradação física – tema que muitos antes (Kokoshka, por exemplo, mas também Egon Schiele), e muitos outros depois (Paula Rego, Robert Gober, Cindy Sherman, entre tantos) igualmente abordaram –, o facto é que cada um destes o aproxima a partir de um olhar diferenciado, que não só muda a interpretação desses sinais como os acolhe no plano do que se poderia designar por uma especificidade ontológica. E que autoriza, desse modo, aproximações diversas às temáticas similares de que partiu. Nessa diferença, por vezes muitíssimo subtil, já que uma autoria é sempre um diferimento quase imperceptível, se esboçam os signos distintivos desse renovado olhar sobre o que parece ter a idade do mundo, sejam a morte, o amor, o sofrimento, a solidão, a violência, ou os respectivos pares de opostos. Por essa razão também será possível agora adiantar que o que aproxima duas obras determinantes, dentro de um determinado modo de expressão, é mais a similitude no modo de aflorar os seus temas do que a aproximação entre as formas expressivas ditadas pelo tempo. Assim, e por isso mesmo, Lucian Freud está mais próximo de Rembrandt, chegado uns séculos antes dele, do que de muitos outros seus contemporâneos. Como Picasso evoca, na sua capacidade de exprimir a violência constitutiva do mundo, mais a Goya do que a outros seus próximos. Ou Mondrian vem de certo classicismo rafaelesco. Ou Malévich se entende melhor quando se percebe que ele erigiu a mais radical abstracção sobre a evidência presente na tradição do ícone ortodoxo russo.
E assim, também as famílias que habitam essa longa saga a que chamamos História da Arte se constituem por aproximações inesperadas que transcendem, quando são decisivas e o seu pressuposto é radical, as
diferenças históricas que as separam. Não foi Picasso quem afirmou, mostrando disto mesmo a compreensão mais absoluta, que a arte mais
moderna que conhecia era essa que acabara então de se descobrir, préhistórica, em Lascaux e Altamira?
Então, o que desenha uma obra não são pois apenas esses signos que já para trás referi, mas é, também, o modo como esta se inscreve, mesmo se subtilmente, numa determinada família – família expressiva, perceptiva, espiritual, ontológica – que, de certo modo, desde logo a coloca num plano que, sendo histórico, é ao mesmo tempo transhistórico. E na medida em que cada obra singular institui a sua própria antecedência como se, de alguma maneira, a elegesse. Por isso Harold Bloom, a propósito da literatura, pôde dizer que se deveriam fazer leituras shakespearianas de Freud antes de se procurar fazer leituras freudianas de Shakespeare.
De facto, toda a obra que, enquanto tal, se afirma toma ao mesmo tempo
a inevitável forma de um vínculo fortíssimo a uma dada tradição, que prolonga e que profundamente transforma, reinventando-a, ao mesmo tempo que pressupõe, para si mesma, uma espécie de linha de invenção que se define como um processo de resistência, ou de insistência, de um determinado corpo de questões. As que nela regressam como se fosse esse incessante regressar através de manifestações diversas o que permitiria enfim entendê-la na singularidade do seu próprio território.
Assim com a obra de Nikias Skapinakis, cujos já cumpridos 55 anos de trabalho permitem retraçar, sobre um vastíssimo corpo de experimentações e de diferenças, uma nítida linha concordante. Nela, então, em cujo percurso ao longo da segunda metade do século XX da arte portuguesa não é apenas possível encontrar essa referida dimensão de resistência/insistência temática - em que desde logo se podem destacar os elementos concernentes à impossibilidade (ou à suspeita de equívoco) com que encara a abstracção, a referência histórica alargada quer ao tempo presente quer às recontextualizações do passado (da arte e da própria história), o subtil apelo a uma sensualidade do mundo, a súbita hesitação metafísica, a distância irónica que institui entre o que seria do real e o que seria da representação) –, como igualmente se fazem evidentes certos núcleos conceptuais a que incessantemente regressa."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Mareantes, Presença e Vercial.