sábado, 25 de novembro de 2006

Pré-publicações - 1


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O Miniscente vai iniciar na próxima semana uma nova rubrica dedicada exclusivamente a pré-publicações. Para hoje - como já tinha anunciado -, reservei o número zero da rubrica. Trata-se do novo romance de José Luís Peixoto, Cemitério de pianos (Bertrand, Lisboa), cujo lançamento vai ter lugar na próxima segunda-feira, dia 27 de Novembro, pela 18 horas e 30, no Teatro São Luiz.
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Para além da iniciativa e dos convites directos a autores, confirmaram já a sua adesão à nova rubrica do Miniscente as editoras Campo das Letras, Colibri, Presença, Mareantes e Vercial. A intenção destas pré-publicações é clara: intensificar o papel da blogosfera como mediadora activa entre os mundos da edição on e offline.
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Pré-Publicação:
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"A terrina de loiça que estava a enfeitar o centro da mesa da cozinha foi comprada pela Maria e pela mãe na feira da Luz. Era de tarde, era domingo e era setembro. Havia anos que a minha mulher andava a comprar peças para o enxoval da Maria. Em todos os aniversários, em todos os natais, a Maria recebia prendas para o enxoval: jogos de lençóis, jogos de toalhas. Às vezes, no fim das manhãs de sábado, a minha mulher chegava do mercado e, entre sacos finos com folhas de alface, com cenouras, entre sacos que tinham escamas de peixe coladas, tirava panelas, chocolateiras e púcaros de alumínio.
Essas compras eram feitas com o dinheiro que a minha mulher poupava. Comprava copos e talheres, saleiros e pimenteiros, galheteiros de azeite e vinagre, molheiras, argolas para enfiar guardanapos.
Naquela tarde, a Marta já estava casada e morava ainda na casa perto da oficina. A minha mulher e a Maria passeavam-se pela feira da Luz. Era a claridade de uma tarde de setembro. Sorriam, analisavam objectos que não pensavam comprar e perguntavam:
- É a quanto?
Atravessaram a rua dos sapatos e das roupas para verem as modas. A Maria tinha uma mala a tiracolo. A minha mulher tinha uma mala de napa enfiada no braço. Pararam ao pé de um carrossel para comprarem uma fartura e, enquanto comiam, com óleo e açúcar à volta da boca, olhavam as crianças que faziam birras e escutavam a música estridente que os altifalantes distorciam.
Passaram por tendas de cadeiras e cestos de verga. A minha mulher segurou uma colher de pau e perguntou:
- É a quanto?
E chegaram a uma tenda que vendia toda a espécie de loiças. Havia cães de loiça, pintados de dálmatas, sentados, com olhos ternos. Dava vontade de lhes fazer uma festa na cabeça fria de cerâmica. Havia uma fonte de loiça que tinha luzes de várias cores e que funcionava com um mecanismo que fazia com que não parasse de jorrar água. Havia pratos de pendurar na parede a enfeitar e havia pratos de trazer a uso. Havia travessas. E havia terrinas.
O olhar da Maria foi imediatamente atraído por aquela terrina. Levantou a tampa para ver o seu interior e para segurar a concha de loiça, que tinha um cabo esculpido de flores. A pega da tampa eram três rosas com pétalas de cerâmica. As pegas da terrina eram também feitas de rosas. Em vários pontos da terrina e do prato onde estava assente, havia rosas pequenas e botões de rosa esculpidos e pintados com minúcia.
A Maria olhou para a minha mulher como se não tivesse coragem de pedir. A minha mulher olhou para ela, virou-se para o tendeiro e perguntou:
- É a quanto?
E perguntou se não baixava o preço, ele disse que não podia, ela repetiu a mesma pergunta, ele baixou o preço e a minha mulher tirou o porta-moedas da mala.
O homem ficou a embrulhar cada peça da terrina em folhas de jornal, enquanto dizia:
- Fica muito bem servida.
As lâmpadas já estavam acesas nos postes, mas ainda não era de noite. O fim da tarde era o céu que escurecia o seu próprio azul. O tendeiro regalava-se a embrulhar o prato da terrina numa folha de jornal e a acomodá-lo no saco de plástico. Regalava-se a repetir frases que já tinha dito mil vezes. A minha filha sorria e a minha mulher respondia palavras casuais com grande esperteza.
Foi essa terrina que o marido da Maria levantou com as duas mãos. Segurou-a pelo prato, segurou-a à altura do peito e, com toda a força, atirou-a para o chão num instante de absoluto silêncio. Os pedaços da terrina ficaram espalhados e inúteis por todo o chão da cozinha; da mesma maneira, ficaram espalhados os botões, os alfinetes, as pontas de lápis, os pedaços de brinquedos e todos os objectos sem uso que estavam guardados no seu interior
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Actualização do clube de editoras que integra o projecto de pré-publicações do Miniscente: Campo das Letras, Colibri, Presença, Mareantes, Antígona, A Esfera das Letras, Vercial e Bizâncio.