quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Blogues e Meteoros

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Hoje, no Expresso online:
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O novo niño mimado de la historia humana?
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Há uma questão que qualquer analista de blogues devia colocar a si próprio: que espaço existiria há alguns anos que, hoje em dia, os blogues tenham passado a ocupar? Ou será que um espaço totalmente novo se veio apenas acrescentar a outros espaços já existentes?
Creio que a blogosfera veio maioritariamente responder a horizontes anteriormente existentes, embora tenha também alargado o horizonte com que nos debatemos e exprimimos no quotidiano.
Comecemos pelo primeiro caso. A blogosfera veio de facto ocupar:
1 - O que antes era um espaço de silêncio que se desenvolvia de modo vertical entre alguns emissores localizados e uma vasta cadeia de auditórios (o tempo de incubação e interpretação de um livro, de um filme, de textos publicitários, do discurso político, etc. que hoje aparece a cruzar a meteórica miscelânea temática dos blogues).
2 - O que antes era um espaço apenas potencial de interacção que vivia contido pela própria natureza dos media tradicionais (a reacção face à televisão, face aos espaços de crónica ou face à própria sintaxe das notícias/ imagens que hoje preenchem boa parte dos discursos activos e plurais que se enunciam nos blogues).
3 - O que antes constituía um espaço crítico a partir do qual se descreviam coloquialmente – era “matéria de botequim” – certos mundos de cariz muito empírico (as viagens, os lazeres domésticos, breves reflexões, notas casuísticas, enfim, pequenos actos do dia a dia que hoje aparecem intensamente transpostos em conteúdos da blogosfera).
Passemos ao segundo caso. A blogosfera veio também realmente acrescentar horizonte aos nossos horizontes, sobretudo pelo facto de ter aberto a possibilidade de existência ao que, hoje em dia, pode ser já caracterizado como sendo a “cidadania expressiva” (um imenso jorro “telepático” global que carece ainda de uma adequação das linguagens tradicionais às estruturas do novo meio). Este novo redimensionamento dos horizontes expressivos corresponde a um espaço potencial que anteriormente não estava a ser desenvolvido por diversas razões, sendo as principais o controlo apertado dos mecanismos de edição e o desfasamento entre o desejo de iniciativa expressiva e os meios que a pudessem tornar massificadamente possível. Existirá uma interessante analogia entre este caudal de novas escritas e “escritores” (o número de blogues não deixa de crescer no mundo de modo exponencial) e o final da censura que, no caso português de há trinta e dois anos, toda a inteligentsia pensou que viria acompanhado do anúncio de um número ímpar de obras de qualidade até então ofuscadas do público. Se hoje se sabe que este último facto se traduziu afinal no verdadeiro mito de Abril de 1974 (pondo de lado uma meia dúzia de honrosas excepções), também se pode afirmar que, no caso dos blogues, a optimização massificada da expressão não logrou tornar visíveis, até hoje (salvo a mesma meia dúzia de excepções), novos “génios” anteriormente ofuscados pelo “sistema”.
Ortega Y Gasset percebeu muito bem no seu tempo que muitas vozes que nunca tinham aparecido antes no espaço público haviam subitamente começado a singrar. E baptizou-as, sem grandes ironias (La Rebelión de las masas, 1939), como a voz do “señorito satisfecho” ou do “niño mimado de la historia humana”. Adoraria saber como é que Ortega baptizaria, nos tempos que correm, este novo caudal que procura sagaz e desesperadamente o core de uma renovada expressão.
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Outro Blogues e Meteoros (o Nº5) que me esqueci de publicar no Miniscente (ver aqui no Expresso online):
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De licra lilás como a Madonna
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Muitos portugueses gostariam de ser como o King Kong: peito ainda mais peludo, força instigadora e narinas de intimação para o que desse e viesse. O fenómeno é óbvio quando se olha para o trânsito do nosso país: face aos erros dos outros, os portugueses reagem em cadeia e vociferam como se fossem um híbrido entre o escuteiro impoluto e o vitoriano indignado.
Haveria razão para tais enfados, se todos os portugueses fossem polícias de trânsito, ou se todos estivessem no lugar da consciência dos faltosos, ou ainda se fossem sempre vítimas dos actos destes. Mas mesmo não sendo polícias, nem fantasmas de mentes alheias, nem sequer vítimas, os portugueses continuam a insistir nesta prática. Todos os dias. É coisa que lhes está no sangue.
No fundo, adorariam ter perseguido Jack, o estripador. No fundo, gostariam que a sua consciência fosse sempre a dos outros (criar-se-ia assim um mundo de criaturas liliputianas a dançar sobre uma caixinha que reproduziria sempre a mesma música). No fundo, gostariam de ter sido sempre vítimas, de acarretar culpas pesadas e de se queixarem a tempo inteiro dos infortúnios do destino.
Estas três características do King Kong “português suave” poderiam condensar-se numa única imagem. Imaginemo-la como uma espécie de Júlio César vestido de licra lilás como a Madonna a ler versos de Teixeira de Pascoaes de manhã à noite (ou então, numa versão menos intelectual, a devorar a aura do Padre Sousa Martins). Creio que é um retrato robô bastante aproximado do português inconsolado com o caos do trânsito que, ao fim e ao cabo, ele próprio tanto adula e pratica.
Se colocarmos lado a lado o trânsito e a blogosfera, numa espécie de alegoria menor, é bem possível que ao português inconsolado com o trânsito corresponda um novo tipo de voyeur da blogosfera que anda, aliás, muito em voga.
O retrato robô desse novíssimo voyeur – que acumula também as funções de escuteiro vitoriano – é claro e não tem quaisquer segredos: diz que nunca leu blogues, ou então, se os leu, foi por brevíssimo lapso e tão-só para confirmar a demência informe que os percorre de lés-a-lés e sem excepção.
Pode ser um jornalista com dores da tarimba. Pode ser um académico que trocou a especialização pela cor das joaninhas. Como pode ainda ser o simples desempregado de causas maiores: desses que de tanto sonhar se tornaram na bela adormecida, embora sem terem reparado, tal como Pessoa avisou, que eram eles mesmos “A princesa que dormia”.
A desconfiança face à cidadania electrónica é um sintoma cristalino da excitação destes nossos King Kongs lusitanos (o “Velho do Restelo” não teria o encanto de quem parte a porcelana toda). Por outras palavras e regressando à alegoria: à medida que as novas formas de cidadania se consolidam, neste novo mundo cada vez mais descentrado e aberto, mais a caravana passa e o escutismo impoluto vocifera com a força de um nada. É por isso que, sensivelmente a meio do seu último romance, A Possibilidade de uma ilha, Houellebecq dá a Vincent Greilsamer – personagem meio iniciática – as seguintes palavras: “A única coisa que não é Kitsch é o nada”.
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Para a próxima semana, anuncia-se no Expresso online a crónica "A profecia da ciberpoética".