sexta-feira, 23 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 41 (act.)

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A interrupção do coito é um método clássico de precaução que nunca impediu um vasto campo de possibilidades, mesmo as mais inesperadas ou desejadas. A expectativa de interromper um coito sempre coincidiu com um horizonte fluido que tendia a diluir-se no frémito do prazer, na tentação ad aeternum do acto e na entrega ao ilimitado. É por isso que a interrupção do coito sempre navegou, e há-de navegar, na incerteza do que, ao mesmo tempo, ‘é’ e ‘não é’. A partir dele, ou da intenção de realizá-lo, tudo pode irremediavelmente acontecer. O que o sustém é o que o alimenta e o que o prefigura é o que o trai.
O coito interrompido é, pois, uma partilha tácita que pode, a qualquer momento, tornar-se no pasmo mais maravilhado da volúpia: uma rendição deslumbrada.
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A interrupção da leitura tem hoje em dia na rede um destino semelhante à interrupção do coito. As coisas ligam-se quase cutaneamente. Não tanto pelo facto de a instantaneidade da rede poder sugerir – e sugere certamente - formas de desejo protéticas, mas sobretudo porque a rede é, ela mesma, uma amálgama de interrupções permanentes, devido às remissões que conduzem, segundo a segundo, aos links mais diversificados.
Os destinos criados pela omnipresença dos links são incomensuráveis face à via - ou ‘estrada clássica’ - que sempre fez da leitura uma travessia calma que, quando muito, acautelaria a existência de um ou doutro cruzamento ou viaduto.
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Nos dias da rede, cada segmento de uma via (ou de uma estrada) é já - e sempre - um desdobrável quase ilimitado de seduções que nos aparece diante dos olhos sob a forma de índices variados, de ícones atraentes, ou de simples mudanças cromáticas (a palavra azulada acenando na frase negra).
Este banho de imersão faz do corpo do blogger que imergiu na rede um corpo que é quase só feito da água que o envolve: como se se tivesse dissolvido na matéria que transformou as vias - e as estradas clássicas – na mais pura volúpia. Como se todos os caminhos se tivessem extinguido e, em sua substituição, aparecessem agora vórtices doces onde se está em todo o lado e ao mesmo tempo.
Afinal, não há melhor metáfora para um orgasmo quase perfeito: essa perda de lugar, de horizonte, de expectativa e de consciência de interrupção. ‘Estar lá’ como explicação e ‘ficar lá' como devir: é tudo. Tudo para explicar um bom orgasmo, ou para situar a perdição do actual sujeito protético que está a fazer da rede a obsessão mais eufórica da sua individualidade.
Há descobertas que são simples: soam ao que somos, ao que fazemos e ao que – substancialmente - fantasiamos.
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p.s. - Remando quase ao mesmo tempo e na mesma direcção: publica-se hoje no Abrupto um segundo - e óptimo - texto sobre a natureza retrodita dos blogues (o verbo "retrodizer" foi utilizado por Borges para caracterizar o papel de Kafka como pioneiro de muitos dos seus antepassados - Otras Inquisiciones, Kafka y sus precursores, 1952). Lembro-me deste tipo de análise ter atravessado os blogues há uns dois anos.