sexta-feira, 28 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 14
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Naquele dia - lembrava Abel -, as nuvens pareciam elevar-se com feições espantosas. Eram formas diluídas, férteis, sem contornos fixos a quererem transmitir a quem as lesse o que não cabia nas palavras, nos gestos, nos olhares mais comuns. E, no entanto, como interpretar um tal tecto do mundo? Com que leis? No Rossio, em Lisboa, diante do Nicola, uma multidão, mais ou menos alheia ao facto, acotovelava-se e detinha-se junto aos quiosques. Os jornais exibiam, já em grandes letras e com poucas variações, a mesma notícia. O dia era de trovoada iminente, de grande humidade, de calores anormais para a época. Não, não era dia de todos os santos, nem de incêndio anunciado, nem era tão pouco dia de tourada no Terreiro da Ribeira das Naus. Era uma Terça-feira normalíssima, mas carregada, densa, impiedosa. Depois, num repente cheio de relâmpagos, choveu, choveu, choveu e a cidade pareceu subitamente aliviar. Os jornais repetiam todos o mesmo, ou seja, que o cidadão José Adão Ulisses Ferreira, mais conhecido pelo Adão Ferreira do inenarrável programa ‘Limões e Biliões’, tinha acabado de entrar em coma.

E foi com a chegada dos jornais da tarde que se soube, por fim, da morte de Adão. A televisão, em comunicado lacónico, já o havia divulgado no fim da manhã. A cidade parou. Para os lados da Estrela, convergiram milhares e milhares de pessoas. Soube-se, num ápice, que o corpo iria ficar em câmara ardente na Basílica que D. Maria I mandara construir como gratidão pelo nascimento do seu filho José.

Entre o hospital militar, o jardim da Estrela e os caminhos que conduzem à Lapa, a Campo de Ourique ou ao Tejo, uma multidão passou a entoar, desde o início da tarde, a música do ‘Limões e Biliões’. Era a gratidão dos portugueses por aquele que se tornara na figura mais emblemática de toda a nação. Só ao fim da tarde, a chuva parou e o calor foi diminuindo, a pouco e pouco. No ar, as nuvens enovelavam-se e pareciam sugerir formas animais, seios prodigiosos, monstros da neve, crateras distantes, crustáceos colossais, fadários do fim do mundo. Há décadas que Portugal e Lisboa não conheciam um ajuntamento como este. Há décadas. Era uma espécie de silenciosa revolução, misturada com fé e evocação. Era uma espécie de prece, misturada com fervor e reconhecimento. Era de facto impressionante olhar, a partir do zimbório da Basílica, para a confluência de ruas em torno das áleas do imenso jardim, igualmente enxameadas de gente e mais gente. Tágides e gente. Um mole humano sem fim.

Abel saiu da estação e levou o grupo até ao pontão da Doca de Abrigo, penetrando na neblina húmida da barra que as ninfas, a memória dos nautas e os sete lemes de Ulisses haviam tecido para as noites de confissão exemplar como esta. Atrás, os doze, como se se entregassem ao milagre de uma súbita transfiguração, ouviam a história, detalhe a detalhe, ponto por ponto.

Ao fundo, junto ao barco a remos abandonado, pequenas cordas ao vento reproduziam o marejar inquieto das águas. Breves ondas a congeminar os reflexos de uma lua quase ausente.

A seu tempo, verão por que é que eu, neste momento, me chamo Abel. Para já, a história que vos tenho estado a contar é a de José Adão Ulisses Ferreira. Que também sou eu, juro-vos. Não tenham medo, porque é essa a verdade.

No meio da água quase negra do Tejo, passa agora um barco comprido de cabine rasa, clara, rasgada por três janelas iguais. Uma pequena luz espalha-se por esse tríptico frágil como se três estrelas a sós cintilassem num firmamento de breu total. Os treze escutam em silêncio. Os treze olham em silêncio. É noite fechada, noite de Tágides. O barco passa a uns dez metros do pontão da doca, alivia os motores e parece rumorejar, ou borbotar ainda mais lentamente do que há segundos. Alguém anda depois na ponte até à proa com uma lanterna na mão. É alguém que fica parado a olhar-nos durante muito tempo. Não podia ser nenhum de nós, é evidente. É um desconhecido que entra pela neblina húmida da barra, entre ninfas e memórias invisíveis. Se um de nós pudesse ser, ao mesmo tempo, aquele que nos olha e nós próprios, esta vida de certeza que seria diferente, pensou Isabel, mas não o disse. Depois, enigmático e sigiloso, o barco comprido de cabine rasa e rasgada prosseguiu o seu caminho. Já ao longe, Isabel viu claramente a mão do homem no ar. Uma saudação quase insondável. É noite fechada. Noite de Tágides. E a mesma Isabel, virando-se para Abel, perguntou: e você, Abel, acredita que a fronteira entre a vida e a morte pertence ao mistério?

O imenso funeral subiu lentamente até ao início da Ferreira Borges e virou depois, à esquerda, em direcção aos Prazeres. Ciprestes sobre o Tejo, foz de miragens e ventos na derradeira encosta, miragem da cidade exposta ao crepúsculo perpétuo. E, no entanto, os Prazeres, os Prazeres, sempre os Prazeres. Durante mais de oito horas de caminho vagaroso, entre paragens sucessivas e manifestações meio histéricas, a gigantesca comitiva bateu palmas, acenou com lenços de todas as cores e cantou. Era a persistente melodia do genérico do ‘Limões e Biliões’ que se propagava neste Campo de Ourique, transformado no labirinto de um imenso cortejo. Eram milhares e milhares de vozes a entoar esta espécie de novo hino, como se fosse um murmúrio ancestral há muito conhecido por todos. Eram milhares e milhares de vozes diluindo-se numa ladainha geral que parecia fazer deste povo uma verdade, um desígnio, um desejo enigmático ou encoberto. Era um sentimento íntimo, ocidental e atlântico que se manifestava na solene despedida a um homem de nome José Adão Ulisses Ferreira.

E todos pensavam que ele tinha, de facto, morrido.

Abel voltou a fitar o rosto límpido de Isabel e disse que não podia responder. Que não sabia. No entanto, se esses milhares de pessoas soubessem o que realmente se passou, talvez não tivessem levado tão longe o inebriado desafio colectivo de que todos se lembram, e de que eu era sobretudo o pretexto. Isabel continuou a olhar para a réstia última de luz daquele barco fantasma que, entre o breu absoluto do Tejo, se perdia agora na sua própria escuridão.

E Abel a repetir que não se esquecessem da frase inicial, a primeira.

E Júlia que não era capaz de deixar de ouvir aquela música de cordas, como se fosse uma ventura que lhe chegava de muito longe. Com toda a fortuna e magia desta capital do mundo. E voltou a pensar, como se fosse pensamento seu: Se Alexandria, no curso da história, exportou em viagens um saber anteriormente escrito, já Lisboa, nas navegações que segredou ao mundo, apenas terá legado a aventura e a experiência errantes do seu próprio e misterioso destino. Por isso, Lisboa estará ainda toda por escrever e por cantar, talvez sob o delicado véu dos seus ecos nocturnos, das suas procissões e cortejos, dos seus encontros e revelações prestidigitados. Dessas vertigens, uma sobressaiu a que se chamou fado e às outras duas, tal como às cabeças de Janus, chamaram Cesário e Pessoa. Essas vertigens são também a voz que se adensa sobre o gravitas da finisterra total, onde as migrações do mundo se acamaram e o infinito mar da memória, o mito, desenhou a matéria-prima para futuros poemas e visões.

O sapateiro Palmeirim olhou então para Júlia e entendeu o sorriso, talvez mesmo o gáudio; a raiz mais polida e reluzente do olhar, numa palavra. Disse, como que a finalizar: - Por agora disso não me curo eu, porque a mim basta-me saber que eu o quero mais que todos os do mundo. Assim fora Lisboa... e assim seríamos, hoje ainda, o coração do mesmo mundo!
Acredite nisso menina Júlia que é mesmo verdade!

Apesar dos enigmas do sapateiro, a verdade é que o mais complicado de toda a confissão de Adão, Ulisses e Abel estava ainda por vir.