segunda-feira, 30 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
DÉCIMO PRIMEIRO EPISÓDIO
(A recta imprevista)

Até que surgiu a recta que tinha aproximadamente cinquenta metros. Faltaria menos de um quilómetro para atingir o mirante. O desejo.

(Tudo se passa entre a concórdia e a traição - pensou Rui, depois de tudo ter já acontecido).

(Apenas um dom. A romagem do espírito que chega calada até ao momento em que nos vimos frente a frente. Um carro para os dois. O absurdo. Nunca nos tínhamos visto. E estávamos ali como se tivéssemos acedido à imortalidade. Esperávamos um sinal. Qualquer coisa. Um automóvel é um bem, um luxo, mas nunca pensei que fosse um sinal providencial. Porque um carro atravessa o espaço da mesma maneira que um milagre se atravessa na imaginação. Continuamos face a face, os dois, diante do mesmo automóvel. Cada um com a sua chave. Chegámos ao parque, ao mesmo parque, à mesma hora. Tentámos entender que só nós, apenas nós, nos dirigíamos ao nosso próprio carro e que mais ninguém poderia, à mesma hora, dirigir-se àquele carro que é e era o nosso. Mas, naquele dia, aconteceu. E isso foi um dom. O dom. Rumámos, depois, a bordo de um silêncio e de uma confissão sem qualquer explicação. Éramos como que um episódio barroco que leva o movimento a despertar as realidades e não a realidade. Única. E entre elas, entre as várias realidades do mundo, algo acabou por despertar o que vivemos a dois por breves horas. E por isso, juro, viajámos em direcção ao ponto mais alto, à quimera de um degelo superior, onde Deus nos pudesse esperar. E nós com Ele, de braço dado, com uma imperial ou com um imenso charuto na mão, a partilharmos a mais inenarrável das brincadeiras. E vi-me a mim e a eles, a Rui e a Deus, de mão dada a corrermos sobre as nuvens do crepúsculo, nesse istmo em que as curvas da vida adivinham a derradeira recta e, com ela, o nevoeiro rasteiro, a amarga espera pelo miradouro do desejo proibido que nunca mais veria. Aquilo já era uma espécie de redenção a antecipar-se ao cume anunciado. Ainda o mundo e a vida eram a imagem da ignição de um mesmo veículo disputado por dois seres humanos que se amavam e traíam, sem saber. Eu, a inventora da vacina maravilha, da vacina mágica e ele um homem de leis que faria inveja ao seu colega de barbas que leu os mandamentos da lei de Deus. Vejo-o agora sentado na nuvem azulada do fundo, entre dois lampadários feitos de semente e caules de balsamita. Um verdadeiro dom, esse encontro, esse magno prazer de ter existido na escalada da grande montanha, da desmesurada falésia. Até que. Até que surgiu a recta que tinha aproximadamente cinquenta metros. Faltaria menos de um quilómetro para atingir o mirante. O desejo. - pensou Maia, milionésimos de segundo antes de tudo ter acontecido).


Próximo e último episódio: "E o cheiro denso da balsamita a celebrar os ares da montanha. Um capricho inexplicável."