quarta-feira, 18 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
TERCEIRO EPISÓDIO
(A inevitável colisão)

Perseguindo a mesma linha amarelada e viva gravada no chão, Rui e Maia vão como que irmanados num mesmo destino, num mesmo ímpeto, num mesmo acaso. Passo ante passo. Ouviu-se, nessa ventura de passos, uma música a espalhar-se nos ares. Aquilo era berreiro e brado que saía do microfone da cabina onde se pagam os talões. Aquilo era Ravel roufenho, ou era uma orquestra de Cádis, talvez de Argel ? Um piano, uma flauta, a percussão marcada, rapidíssima, cordas agitadas, sempre em suspensão. Aquilo parecia um circo, o asfalto a ondular e a ressoar, um deleite iminente; aquilo era como se fosse o palco da Broadway a emergir, a submergir para inusitado musical, misturado com a acrobacia viva de um meio-dia invulgar. Seria fome, seria pressa, seria coincidência, charada ou miragem ? E, de repente, Rui a enviesar, a virar à esquerda, a aproximar-se da porta do automóvel. E Maia a franzir o olhar pela primeira vez. Como é que era isto possível ? - repetia entre lábios. - O quê ! Não posso acreditar ! - pensava Maia em voz fina de grão-de-bico. Até que decidiu ultrapassar o homem, em breve corrida, e veio colar-se à porta que era, essa sim, a do seu automóvel.
E Rui e Maia, de repente, com chaves diferentes, quem sabe se iguais, a tentarem abrir a porta do mesmo automóvel. E um e o outro a dizer, a clamar, a jurar, com os pés juntos e fixos ao centro da terra; à gravidade da inesperada dança, do imprevisível gesto: - Mas... este é o meu carro ! - É o meu, quer ver ? E ambos a exibirem os mesmos documentos, os seguros idênticos, os nomes em conformidade com a matrícula. - Não é possível ! Olhe que eu sou uma pessoa de bem e detesto algazarras ! - Olhe, que eu não gosto de brincadeiras e muito menos a estas horas. Estou cansada e tenho muito que fazer ! - Não acha melhor chamarmos a polícia ?


Próximo Episódio: Por baixo, o declive, o abismo, entre muros e os imensos vales de onde brota água benta e a colossal nascente dos quatro rios que se misturam, dois a dois, na planície aluvial da grande cidade.