quarta-feira, 9 de março de 2005

Outra Lisboa, hoje

Uma fachada a sós (vidros foscos, inquietos, preenchidos pelo reflexo das nuvens do fim da tarde. E há ainda uma voz antiga, o véu, as portadas de ouro, um pássaro em diagonal e tanto musgo rasteiro diluído nas ombreiras calcárias). Por baixo, as arcarias submersas (pressupõe o olhar que está preso na sua própria turbulência, que é a da imobilidade). É o rio que se espalha, incólume e talvez ameaçador, sob a secreta gaiola de madeira onde a cidade sussurra e respira (no fundo das galerias romanas, o eco propaga-se como um coração sem fim: memórias de almirante, rosto sanguíneo, avermelhado, moldado pelo sal da sua interminável viagem). Por cima, alinhando aquela e muitas outras fachadas, surge um Boqueirão estreito e cheio de traços. Desordem: tinta negra, tempo ermo, vestígios de sujidade e o imenso palimpsesto de cartazes ao vento. O pássaro, o tal que descera e subira em diagonal quase perfeita, pousa agora no friso entre janelas. A fachada parece subitamente inclinar-se e o Tejo profundo aparece, por um segundo, a soletrar a maresia. Um momento único. Uma fio de luz tão efémero quanto anónimo. Uma âncora perdida no antigo cais sobre areias escuras e uns tantos corvos à volta. Deve ter sido assim, há muito, o que hoje apenas reluz na absolvida face do abandono.