domingo, 13 de fevereiro de 2005

Política vs. jogo (act.)



A celebrada expressão "Obviamente demito-o", pronunciada por Humberto Delgado há mais de quatro décadas, ainda não fazia realmente parte de um jogo. Foi uma frase de corajosa e feliz ruptura que, independentemente das abismadas perspectivas da época, separava o possível do impossível e demarcava os campos em presença. E se algum jogo estava aqui em causa, então era um jogo muito grotesco, falseado à partida e incomunicável.



A permuta da expressão "Olhe que não, olhe que não", reiteradamente utilizada no frente a frente Soares-Cunhal durante o escaldante Outono de 1975, já era uma evidente peça de jogo, embora ainda com regras muito rígidas e estriadas: a linguagem era posta a oscilar com muito cuidado (e sem extravasar as medidas) entre referências reconhecíveis, pesadas e claríssimas. Tudo era possível dentro dessa moldura. Tudo era possível dentro dessas imagens fixas, imobilizadas e próprias de uma inevitável doxa. E todos conheciam excessiva e feericamente as regras do jogo, qual cartilha que simetricamente se distribuía pelas barricadas dos contendores. Foi assim que a revolução se pôs em marcha: como um eldorado orgíaco e vivido no presente, como a grande ilusão do ponto-ómega social, como uma varinha de condão que perpetuaria o homem numa espécie de novo deus.



A recentíssima expressão "Este sabe quem é", assim como a variada tradição dos "Choques" (ou os “rumos” e as “utilidades”) já constituem peças de um jogo que não tem fronteiras, nem pilares alicerçados em valores e em referências hierarquizados. Tudo agora passou a ser possível, sem que seja necessário um "de dentro" e um "de fora" que separassem as simulações, os piscares de olho do "media training" ou os acenos em torno do delírio.
A linguagem tomou conta dos acontecimentos, não como um meio para vaticinar palavras de ordem (de unicidade ou de pluralidade), mas como fim apoteótico onde deslizam afectos, imagens fluidas, crenças esparsas, cores, estilhaços de design, simulacros (de ordem, de confiança, de missionário, de dandy) e estereótipos vulgares (o líder a quem se “compraria um carro em segunda mão” ou “com quem se sairia à noite”). A linguagem tornou-se num fluxo que faz e fez a própria campanha eleitoral. É o uso da linguagem, em cada partido, que passou a criar a ideia de um sentido. E não qualquer objectividade, verdade ou materialidade.
Já se sabe que a linguagem institui sempre os seus marcos de experiência, as suas balizas próprias, as suas coordenadas, para além de se adaptar quase geneticamente a cada campo onde é chamada a germinar. Já se sabe - é clássico - que a linguagem transcende quem a utiliza, autonomizando-se face ao locutor, ao emissor, ao actor. Mas, no nosso mundo, essa autonomia deixou de ser um facto que se contempla e analisa para passar a ser o turbo de um motor que se utiliza. E por isso, neste nosso mundo onde a linguagem do fluxo de imagens passou não só a caracterizar mas também a identificar o perfil fantasmático de cada jogador, o vencedor será sempre o próprio jogo. Apenas o jogo. Nada mais: o jogo.
Mas a pergunta persiste: e depois do jogo?