segunda-feira, 21 de fevereiro de 2005

Diagonais - 7

O argumento típico da “cultura do livro” relativo à diagonal aparece espelhado no Dicionário da Academia com máxima clareza: “ler em/ na diagonal -- ler rapidamente, de uma forma superficial, percorrendo o texto em ziguezague, em viés”.
Juro que adoro, com o devido sorriso, esta linguagem dos dicionários.
É extraordinária a expressão “ziguezague”. De tal modo que nos leva imediatamente para os patins que resvalariam numa pista de gelo onde cada cristal seria uma palavrinha arrumada, douta e digerida. Esse tipo de ágil deriva ou percurso sobre “o texto” é visto, no dicionário, como exageradamente rápido e superficial. Como se o movimento e a superfície fossem inimigos da compostura e do saber. Aos partidários dessa visão almofadada, aconselho um autor hoje muito na moda: José Gil e o seu livro de 1996 sobre a imagem-nua e as pequenas percepções, do qual deixo aqui um delicioso extracto (p.40):

O olhar escava a visão. A vista é o único sentido que adquire (assim) uma profundidade interna: o olhar reenvia para o interior do corpo (como para o sem-fundo da alma). A profundidade do tacto depressa se torna superfície; a profundidade do ouvido não existe enquanto tal, mas apenas como engendramento de uma superfície interna, ou de um espaço volumétrico - ambos limitados; a profundidade do olfacto dissolve-se no difuso; a do gosto, esgota-se na assimilação do corpo. Só a vista, através do olhar, penetra até a um sem-fundo

Não terá sempre o livro tido o seu próprio “sem-fundo”, ao contrário do que pretenderão os cultores da cultura do livro?
Não será “o fundo” do livro - o tal que torna pejorativa a leitura em diagonal - uma grande ilusão de perspectiva (como a dos cenários pictóricos pós-quattrocento)?
Ou será que apenas blogues sabem viver deste “sem-fundo”, onde a diagonal é rainha do seu próprio reino chamado rede?
(esclarecimento: eu sou uma pessoa dividida entre dois amores profundos: o amor pela cultura do livro e o amor pela imaterialidade dos blogues, Por este último, o amor é mais apaixonado, visceral, encantatório. Pelo primeiro, o amor é mais conformado, temperado ou até místico. Daí que a “diagonal” se torne num tema escaldante!)