quinta-feira, 13 de janeiro de 2005

Do pensamento dicotómico em Portugal

Se folhearmos o primeiro volume do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, entre as páginas 262 e 271 - há com cada maluco! -, apercebemo-nos das formas que a nossa língua seleccionou para fazer equivaler a conteúdos de natureza dicotómica.
Este é, ou pode ser, de facto, um barômetro interessante para compreender como é que o pensamento dicotómico (que acaba por relevar o que está em estado de falha produnda numa comunidade) age entre nós. Vejamos os resultados. Dividamos, para já, as coisas em dois grupos principais (há mais):
No primeiro, encontramos vinte e cinco possibilidades apenas com forma adjectiva (ou seja, sem o substantivo abstracto correspondente). Os exemplos vão de "antiamericano" e "antiunionista".
No segundo, incluímos as possibilidades que contemplam, quer a forma substantiva abstracta, quer a forma adjectiva. São culturalmente mais fortes e de maior relevância do que aqueles que apenas mobilizam possibilidades adjectivas. É aqui que estão referenciados os verdadeiros “topic” que o sistema comunicacional privilegia.
(ei-los: anticlerical/ anticlericalismo, anticolonialista/ anticolonialismo, anticomunista/ anticomunismo, anticonformista/ anticonformismo, anticonstitucional/ anticonstitucionalismo, anticorporativo/ anticorporativismo, anticristão/ anticristianismo, antieuropeísta (antieuropeu)/ antieuropeísmo, antifascista/ antifascismo, antifederalista/ antifederalismo, antifeminista/ antifeminismo, anti-ibérico (anti-iberista)/ anti-iberismo, anti-imperialista/ anti-imperialismo, antimilitarista/ antimilitarismo, antiparlamentar (antiparlamentarista)/ antiparlamentarismo, antipatriota (antipatriótico)/ antipatriotismo,
anti-racista/ anti-racismo, anti-realista/ anti-realismo, anti-reformista/ anti-reformismo, anti-revisionista/ anti-revisionismo, anti-semita (anti-semítico)/ anti-semitismo, anti-socialista/ anti-socialismo, antitabagista (antitabaco)/ antitabagismo e antiterrorista/ antiterrorismo)

Destas vinte e quatro formas expressivas, há seis que apresentam, não uma, mas duas possibilidades adjectivas. São as que correspondem a conteúdos culturalmente mais mobilizados e, portanto, em princípio, ainda mais pesados:

a) antieuropeísta (antieuropeu)/ antieuropeísmo;
b)antiparlamentar (antiparlamentarista)/ antiparlamentarismo;

(estas duas estão muito ligadas à experiência das últimas três décadas. Na primeira, joga-se a grande disputa que esteve na base da escolha de fundo das duas últimas gerações portuguesas, enquanto a segunda reflecte ainda a crispação vincada que se projecta sobre a consciência de fragilidade das instituições da democracia, sobretudo sobre o parlamento);

c)antipatriota (antipatriótico)/ antipatriotismo;
d)anti-ibérico (anti-iberista)/ anti-iberismo;
e)anti-semita (anti-semítico)/ anti-semitismo;

(estas três evidenciam uma tradição que se prolonga na contemporaneidade. A primeira advém do início de oitocentos e adensou-se com várias probabilidades semânticas durante o século XX; a segunda denota uma questão traumática fulcral que atravessa a ansiedade lusa; a última é parte escondida e subterrânea da história portuguesa, avivada pelas tragédias de meados do século XX e ainda pelas que, nas últimas décadas, se têm centrado sobretudo no Médio-Oriente);

f) antitabagista (antitabaco)/ antitabagismo;

(por fim, o tabaco aparece como a única prática social envolvida pelo pensamento e agir dicotómicos e, portanto, como alvo necessário de polémica aguda. A questão adquiriu moldes mais dramáticos na última década e meia, na medida em que, no Ocidente, as ecologias politicamente correctas passaram a perseguir o tabagismo, apesar das arreigadas tradições centenárias).
(by the way: isto não é uma abordagem científica, ou seja, ceci n´est pas une pipe)