segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

Soberanias, abismos e convivência

As previsões demográficas provam à saciedade que a sobrevivência da democracia e da liberdade passa, nos tempos que correm, mais pela hábil gestão das mobilidades e dos recursos globais do que pela obsessão do fechamento forçado das fronteiras, hoje em dia meros entrepostos do viver global. Até porque um novo tipo de soberania está claramente, nos nossos dias, a extravasar a ordem dos antigos nacionalismos. Lutar pela soberania significa, agora já e nos tempos que se avizinham, salvaguardar a liberdade e a democracia, não apenas no território ocidental onde fez e faz história, mas também nas vastíssimas diásporas que se movem cada vez mais entre os vários blocos democráticos do Ocidente e as mais diversas origens e paragens do planeta (China, mundo árabe, etc.). É neste movimento de sucessivos reencontros que se situará a ideia de sinoecismo, defendida por Paul Virilio, e que se centra na grande cidade cosmopolítica para que o mundo contemporâneo tenderia.
Vivemos numa grande ponte entre dois universos. Entre um mundo moderno que todos revemos e codificamos claramente, e de que não nos livrámos de grande parte das tarefas, e um novíssimo mundo, cujos sinais globais, hipertecnológicos, ecológicos, macropolíticos e pós-humanos (no sentido das novas antropologias cyborg) nos acenam e nos mobilizam quotidianamente. Vivemos um período porventura homólogo ao Iluminismo de setecentos. Na altura visionava-se retrospectivamente o mundo antigo, enquanto os novos sinais - também tecnológicos, demográficos e económicos - prenunciavam já o mundo que balizaria as práticas de oitocentos e de novecentos. Nessa corrente de ar entre dois universos, Kant, Rousseau, Herder, Diderot, Vico, Hume, e muitos outros, filtraram os múltiplos devires e criticaram o complexo curso das tradições. Dessa sistematização nasceram valores fixos que evoluíram da individualização para a individuação cada vez mais fluida. Hoje revemo-los com a nostalgia dos marinheiros sem embarcação e, entre novos lances meteóricos, voltamos a ter na nossa frente a mesma corrente de ar entre duas voragens, entre dois vórtices.
É na antevisão do universo para que caminhamos - do outro lado da ponte - que os diagramas possíveis da democracia e da liberdade deverão hoje ser devidamente acautelados. Pode mesmo tornar-se normal, daqui a alguns anos, que os dois grandes blocos que se digladiavam nas narrações de muitas profecias quinhentistas, o Ocidente então artificialmente unificado por Carlos V e o vasto desígnio otomano, se venham a reestruturar no seio de uma mesma casa omnipolitana, integrando as tradições e a consciência de devir de uma mesma partilha (e esse poderá vir a ser um dos inícios do sinoecismo acima referido). Contudo, este desígnio - hoje ambicioso e bizarro para muitos - terá que pressupor uma ordem mínima, um entreposto novo, ou seja, um conjunto sucinto de regras de convivência global que deveriam postular-se, para além das crenças e das formas diferenciadas de interpretar e significar o mundo. Foi algo que a década de noventa estrategicamente descurou, devido, talvez, à vertigem de ser, ela mesma, um tempo abruptamente apaziguado.
Para caminhar nesse sentido, deve referir-se que a actual ONU, muito marcada ainda pelos anátemas do pós-Segunda Guerra Mundial, continua presa a um mundo que não entende a complexidade trans e pós-territorial (por outras razões, foi já clara a sua ineficácia em conflitos internacionais dos anos noventa e sobretudo no Iraque de 2003). Vão, portanto, ser necessários, nos próximos anos, novos mecanismos de integração e de interface que assumam, de modo descentrado, o cumprimento dessas regras. A regulação democrática das mobilidades, a segurança, assim como a normalidade das vizinhanças entre culturas e modos de vida constituem feitos estruturantes a que o início do novo milénio deverá inelutavelmente aspirar, para além das questões ambientais e da vital gestão de recursos.
Só assim, um novíssimo denominador comum poderá servir de novo ponto de partida para um novo tipo de entendimento entre blocos planetários: o Ocidente (Europa, Américas, Austrália, etc.), o imenso Mundo Árabe, a grande China (onde o crescimento da classe média tenderá a pôr em causa, a médio prazo, a comunhão entre totalitarismo comunista e capitalismo sem regras), a Índia, a Comunidade Russa, o Mundo Judaico, etc.
Kant teria teórica razão no seu tempo, mas, hoje em dia, essa razão terá que converter-se numa racionalidade que consiga agir para além dos efeitos da brusca civilização da imagem e das significações teo-centradas do mundo. Essa racionalidade ainda não existe e não pode ser sequer imaginada como uma espécie de compromisso à moda do Metropolis de Fritz Lang, ou de deslumbrada injunção diplomática que resolveria milagrosamente todos os males do mundo. Essa racionalidade deverá antes confundir-se com a democracia em projecto, não apenas formatada e fixada territorialmente em nome da liberdade e das convivências pacíficas entre diferentes, mas sobretudo no seu desdobrar para uma dimensão trans-política onde venha a ser possível, de modo inovador, salvaguardar a coexistência diferenciada entre as diversíssimas significações do mundo que, ao fim e ao cabo, definem o nosso mundo (conferindo assim sentido à cidade cosmopolítica do planeta).
A vida humana requer um sentido, uma modalidade pactuada, uma retaguarda face à barbárie. Os abismos dos dias de hoje advêm do tempo real e do império da comunicação, enquanto os de há quinhentos anos advinham do tempo divino e do império da salvação na terra. O que os liga e, por sua vez, o que nos liga ainda hoje, para além das miragens do futuro, é a medida do homem no seu caminhar no mundo, bem como a necessidade de disponibilizar recursos para todos no presente. É aí que a vida requer um sentido, um cuidar no sentido heideggeriano, e não o simples eclodir, ou a inadvertida implosão (ou desconstrução) como prática quotidiana.