sábado, 13 de novembro de 2004

As novas mortes globais

Lembro-me de Paris em 1997 e lembro-me, agora, mais recentemente, de Paris no ano de 2004. Memórias bastante presentes. A cena passa-se num viaduto nocturno e num hospital militar da periferia. Paira a névoa em vez da certeza. Ambos os lugares ilustram algum anonimato e inebriamento. Há quem lhes chame “não-lugares”. Num e noutro caso, comunga-se algo de muito parecido: subitamente, a morte terá interrompido de forma drástica o quotidiano.
Sem que se cumprissem augúrios extraordinários, a morte, ou melhor dizendo, as duas mortes como que suprimiram a natureza dos actores em benefício de uma aura que é a aura do tempo real. A causa imediata dessas mortes é elidida, diferida, ou até eclipsada, através de uma encenação grandiosa: cada minuto dos treze dias em que um dos actores permaneceu no Hospital Militar de Paris parece corresponder à longa convalescença de argumentos e contra-argumentos que, a pouco e pouco, foram dissociando um presumível acidente de um crime, ou de uma gravidez indesejada.
As imagens fortes que esbatem a conjectura geral (o que é que se terá passado?) tornam-se brancas, mudas e silenciosas. Mas são elas, ao fim e ao cabo, que acabam por dominar o apelo e o rasgo da notícia. São elas que acabam igualmente por radicalizar a interrogação das audiências. O pacto perfeito. Até ao momento em que deixa de haver qualquer interesse pela resposta. E o que restará, para além desse preciso momento? Perguntar-se-á.
Talvez a compaixão em cascata, a compaixão pela compaixão. Uma espécie de dor asséptica, esterilizada, desideologizada. Uma dor sem corpo, mas uma dor. Uma dor que dá a volta ao mundo. E o efeito dessa dor chega a ser cumulativo: à medida que as telemensagens realçam as ocorrências trágicas, mais estas se ficcionalizam e dialogam com a sensação de respirarmos intimamente o directo. Nunca a carne desses actores esteve tão próxima da nossa. E, no entanto, é no sofá que se distende a ubiquidade do nosso universo sem fim.
O que subitamente motiva o grande público é poder cotejar o perfume diáfano da tragédia. Em todo o lado do planeta e ao mesmo tempo, sabendo-se, embora, que essa simulação maior não passa de uma cena única e irrevogável, onde a humanidade é embalada face ao abismo que é o seu. É assim que se propaga uma dor antiga e sem sentido. Mas, mesmo assim, uma dor. Uma dor parisiense.
Esta é a grande cena das mortes globais da actualidade: elas repõem o homem numa desmedida arena mitológica, embora, ao contrário dos tempos antigos, essa reposição nos devore através do fluxo planetário de imagens e não já através de uma imaginação autonomizada, local e culturalmente colonizada.
Ambos os actores aspiram agora a uma espécie de transmigração, jamais imaginada nos tempos em que a palavra modernidade passou a ter sentido: Arafat, já não o guerrilheiro odiado e amado, saído da poeira de Gaza, do terror e da natureza de uma nação que ajudou a criar; Diana, já não a princesa amada e odiada, saída de um morris para as grinaldas da realeza, dos rumores e dos gestos aventurosos.
Um e outro tornaram-se bruscamente habitantes da nova Paris que é uma cidade sem terra, sem causas, sem lugares e sem afectos. Diante de nós, apenas fica a imagem que excita a imagem: um viaduto na penumbra e o extenso globário meio azulado que separa o hospital da sua sombra mais remota.