quinta-feira, 9 de setembro de 2004

Iminências contemporâneas

O reconhecimento tardio (Penélope vs. Ulisses, Maria Madalena vs. Cristo ressuscitado de Jn 20,14) é, porventura, uma prova mítica de amor. Nessa medida, a espera é um desígnio tão ideal quanto a paixão ao implicar a deformação do objecto observado. Depois de a imagem lentamente refluir, acede então aos sentidos a real voragem da entrega total. Só Godot não foi reconhecido por ninguém, nem terá chegado até hoje ao nosso convívio, mas esse é também o rosto do fantasma que sucumbiu em nós ao halo da lenda, à experiência do arquétipo, ou à memória mais involuntária. Depois das provas de paixão, passámos apenas a receber anti-heróis, cuja demanda é reconhecível de imediato, sem reservas, sem esperas, sem quase nenhuma idealidade. Infelizmente assim é. Apenas o hiperterrorismo e a iminência metafórica das crises com que respiramos o quotidiano parece, aqui e ali, subtrair-se a uma tal banalização do mito. Ser contemporâneo é estar na disforia e na previsibilidade do actual, mas sempre com a retaguarda do mito entre mãos.