domingo, 15 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata – 27


(Nadar; Adrien Tournachon, Arlequim a sorrir, 1855)

Estou a vê-lo a perguntar onde começa o sorriso e acaba o temor que pode atrair o exagero e, às vezes, a ausência de regra, de padrão ou de preceito. Respondia-lhe que não se podia definir a proporção da paródia. A irregularidade da veste, o desacerto da obscuridade e o escrúpulo dos lábios, por exemplo, cativam mais a desordem e o motim do que a simples parada fleumática que coíbe o sorriso de ser riso. E é por isso que o ridículo pode ser um oceano onde o magnetismo se converte subitamente em paixão. Porque os fantasmas se transformam na brancura das suas vestes, dando-nos a sensação de que falam pela nossa voz e de que andam com o nosso corpo. Como se o temor e o sorriso se sentassem à beira-mar para livremente contemplarem a insubmissa desordem das ondas. E é sobre elas que o arlequim voltou a andar como Cristo havia feito noutros mares. E erguia o braço e dizia que o preceito é o mais simples arremesso dos pobres de espírito. E assim foi. Pode crer-se.