segunda-feira, 12 de julho de 2004

Fim de semana alucinante

Andava eu a vaguear pela Casa de Camilo e a ouvir o anfitrião, o Prof. Aníbal Pinto de Castro, homem douto e recheado de humores, a ler a entrada do Eusébio Macário (que descreve a imagem gravada no relógio ainda hoje presente na trágica sala de bilhar da mansão), quando, a pouco e pouco, dou com as sinetas noticiosas que irrompiam em Lisboa. O ar de trovoada impôs-se e as reflexões fragmentárias sucederam-se:

1 - Foi Sampaio a dialogar entre a palavra dada e a inevitável cobra má das duas crises. Seguiu a via mais fácil e verosímil e entrou em colapso com a sua própria história. A desgraça tem a cor da misantropia política. A tal condição se candidatou Sampaio na passada Sexta-feira à noite. Paz à sua alma.

2 - Ferro, velho amigo de rota de Sampaio, amuou e decidiu tirar ilações pessoais a partir das ventanias de Belém. Demitiu-se e, ao fazê-lo, mostrou a natureza real da sua fraquíssima determinação. Além disso, voltou a dar provas - como tinha acontecido aquando do caso Casa Pia - da confusão de níveis por que sempre pautou a sua emotiva análise. Adeus Ferro.

3 - Imaginar Ferro como futuro candidato presidencial por "corporizar" descontentamentos é delírio puro. No mínimo. Portugal começa a ter uma excessiva e dispersa retaguarda de demissionismo. Terá algum sentido pescar nas águas paradas dessa retaguarda os futuros heróis da nossa tragicomédia? Creio que não. Sinceramente.

4 - Santana começou a disparar para todos os lados. Sem consistência alguma, pessimamente. A ideia peregrina de espalhar ministérios por N cidades não só não descentraliza (essa quastão é, hoje em dia, imaterial, informática e depende de reformas laborais sérias) como radicaliza e convoca os atritos regionais mais básicos que despertaram aqui e ali com as teias da regionalização (a do ido referendo e a do modelo Relvas). Não acredito na credibilidade deste governo para mobilizar o país e para levar a cabo qualquer tipo de reforma mais consequente.

5 - Tenho a convicção de que o governo que aí vem perdeu o centro. Tem contra si, na grelha de partida, não apenas as franjas das várias esquerdas em crise real e simbólica, mas também amplos sectores que, no pós-guterrismo, emprestaram o seu voto a Durão e ao fluxo reformista das finanças protagonizado pela seriedade puritana de Ferreira Leite e pela relativação política de Marques Mendes.

6 - Certos sectores que ainda não emergiram para a complexidade do tempo presente decidiram passar a equacionar tudo, outra vez, na óptica dos mil efeitos esquerda-direita. É a visão mais elementarista, é a tentação mais virada para as vitimizações imediatas, mas não corresponde de modo nenhum ao jogo múltiplo de posições que a situação política actual despoletou. E tudo está ainda por acontecer. A procissão vai no adro.

7 - A pequena política e a real tenderão, nos próximos meses, a encontrar-se ou a sobrepor-se. Sampaio, para mais, decidiu envolver-se na teia que delimita o agir do novo governo. Cada passo de Santana será sempre encarado como um tique acidental do próprio Presidente. Esta prestidigitação mútua tenderá a minimizar os males e a acentuar os gestos de mágica. Mas a crise social baterá à porta. Como há muito não se via. É o meu natural presságio.

8 - No meio desta cena de penumbras, já de si densíssima, com os actores a ocuparem espaços inesperados, eis que a notícia da morte de Maria de Lurdes Pintasilgo surge em bola de neve. Toda a expansão dramática que envolve a crise de sentido do fim-de-semana subitamente se recentra. Aparências. E o peso da evocação parece, apesar de tudo, muito leve. Suspenso ao longe como uma nuvem imóvel. E é assim que o próprio Eduardo Lourenço parece ter alguma razão, quando afirma: "Ninguém é Portugal".