quarta-feira, 28 de abril de 2004

Onofre

Eu posso entender muita coisa, Ricardo. Posso olhar para a boca de cena tentando não me sujeitar às regras que a perspectiva suscita. Posso ser levado a sobrevoar o que um dia ficou em vez da ausência do absoluto. Posso ser compreensivo até ao limite. Posso contemplar com compaixão e silenciar discórdias e gargalhadas reprimidas. Posso ainda tentar ir mais longe do que tudo isso. Mas o Onofre, ouvido já duas vezes à noite no rádio do meu carro, o Onofre é uma chatice, uma grande merda, uma sonoridade ressentida para a qual não consigo ter um milionésimo de fleuma. Mas isto é apenas a tempestade serena que veio ao ser no meu mínimo arquipélago. Lá fora, onde há mundo e palavras prontas a engalanar altares sem luz, lá fora, nesse local aberto onde hoje respiramos um ar que é o do presente - e não o da compulsão de futuros sempre adiados -, lá fora, num palco quase ilimitado, o Onofre do José Mário Branco pode tragar à vontade as suas trovoadas mitológicas. Nada a opor! Para que fique claro.