terça-feira, 13 de abril de 2004

Máquinas propulsoras

Escreveu Paul Auster, em Experiências com a Verdade, que o seu primeiro romance foi “inspirado por um número errado” (ver capítulo 13). No meu caso - que escrevi onze romances nos últimos 22 anos (decidi não publicar apenas dois até agora) -, devo dizer que a primeiríssima inspiração que velejou até ao limiar dos meus sentidos foi uma poderosa constipação nos idos de 1982.
No Outono desse ano, percebi que a transgressão das narrativas é quase sempre um problema de mal estar (nasal, gutural, vocal,velar, etc.). Aspira-se a muito e inspira-se muito pouco. Ousa-se muito e expira-se ainda menos. Há sempre um desacerto entre o que se vislumbra (e se vê) e aquilo que se respira (e se sente).
Uma constipação pode ser, de certo modo, um número errado. Há palcos e palcos para números que não batem certo. Uma narrativa que transgride as narrativas correntes da vida é uma ficção onde o desacerto respira um ambiente distante e vislumbra um mal estar demasiado próximo. Daí que a catarse seja sempre um atributo próprio das existências que não têm sentido, incluindo as que batem à porta de pitagóricos e hipocráticos.
Uns e outros preocupados com o mesmo desvio à norma: ou número fora do sítio, ou sintoma corporal fora do sítio. Por outras palavras ainda: dígito vs constipação; eis a questão.