terça-feira, 13 de abril de 2004

Abril - 1



Um tempo com trinta anos é um tempo que já não vê o que antes existiu. Fica a baça bainha da memória, película escondida mas actual a que se chega mediante imagens suspensas, destaques súbitos e acenos involuntários. Relembrar é pôr em marcha um filme caótico, cuja montagem é um produto de agentes que superam a nossa capacidade presente de agenciar.
Lembro, logo ficcionalizo.
Isso acontece quando me ponho a discorrer sobre o que se passava em Portugal antes de 25/04/1974 e o conto a quem nunca viveu em tais cenários. O mesmo se passaria com os meus pais quando, há mais de três décadas, me relatavam factos marcantes do tempo da Segunda Grande Guerra Mundial. O mesmo se passa sempre que o homem tenta aproximar do outro o relato do vivido, o enunciado simulado e fragmentário do acontecido, o relatório embaciado e implacável do que antes foi e terá sido visto.
Só existirá uma lógica compreensiva e descomplexada para o 25 de Abril, se se entender o Leviatã (mais Hobbes e menos Auster) vivido até então. Ou seja:
Uma espécie de pacto com o pudor aqui e ali interrompido por vozes discordantes, um vazio e um fechamento radicais da arena pública, um medo generalizado em pronunciar certas palavras, o tabu e a mentira a governar as manchetes dos jornais, uma ruralidade dominante e entristecida, um desmesurado atropelo das liberdades mínimas, um imenso atraso face à Europa e o compassado e acinzentado discurso da brigada do reumático que dominava o país. Portugal era uma espécie de país feito de memória, sem ligação ao presente de então e sem qualquer futuro. Em Portugal havia uma desmedida violência comprimida. Na universidade, os estudantes impacientavam-se diante dos gorilas e os ícones do tempo deslizavam impávidos, pouco serenos e sempre a preto e branco: autocarros de dois andares da carris, brandy Macieira, Eusébio eufórico, Madalena Iglésias sofredora, Ramiro Valadão de fraque, O´Neill lendário, a Amália a embarcar pelas canções (a Mariquinhas), o Varatojo a divertir, o Zip a assustar, o Nemésio a brilhar, o Caetano a tentar falar pela tv e Angola ao longe e aqui tão perto. Tanta deserção, tanto refractário, tanta partida a salto. Havia em alguns um sonho sem limites e havia noutros uma tremenda inacção imobilista (a petição de princípio metaforiza bem o estado vivido). Tudo descentrado e prestes a romper. Em Portugal havia uma acumulada violência. Comprimida. Sem saída. Um beco. Mudo. A caminho de sítio nenhum. Mais: Portugal estava condenado por ambos os lados da Guerra-fria.
Era assim, sem mais nem menos. Eu estava lá, no segundo ano da universidade. Parece que foi há séculos. Na Primavera de 1973 passara pela Dinamarca e em Agosto desse ano tinha estado na Holanda e em França (tal como em 1972, então por muito mais tempo). Sabia-se que algo estava iminente. Era tarde demais para qualquer tipo de transição pacífica.