terça-feira, 9 de dezembro de 2003

Pedra de toque



Embora Gustavo Bueno não seja muito bem visto na Academia de Oviedo, concordo com ele na equivalência que estabeleceu entre a invenção (moderna) da "Cultura" e a "Graça de Deus" pré-moderna.
Li o seu livro, El Mito de la Cultura, no ano em que saiu (1996, Editora Prensa Ibérica, Barcelona) e tentei eu próprio levar até às últimas consequências alguns dados aí reflectidos, em 1999, nas Órbitas da Modernidade (ensaio que apenas viria a evoluir de sebenta para livro, já este ano, pela mão da Editora Mareantes).
Vem tudo isto a propósito dos Prós e Contras de ontem na RTP-1. Para além da deficiente mediação da jornalista de serviço, o que saltou à vista no debate foi a fraquíssima prestação pessoal e sobretudo política do ministro Pedro Roseta.
Houve momentos em que o sentimento pouco nobre da piedade me invadiu diante da sua incapacidade instantânea de decisão, diante da sua falta de convicção e diante da ausência de trunfos e objectivos políticos claros.
Não creio que a questão da cultura (e das suas ilusões e “expectativas”), quer no campo patrimonial, quer no campo da criação contemporânea, quer ainda na dimensão mais pragmática da política de públicos, possa ser apanágio para idealidades desencontradas entre esquerdas e direitas. Sê-lo-á apenas numa determinada margem simbólica. Onde a questão da cultura se torna mais vulnerável e polemizável é no confornto com o tipo de mundo em que vamos vivendo nas últimas duas décadas. Sobretudo por se tratar, cada vez mais, de um mundo que é decisivamente mais propenso ao lúdico, mais ligado ao consumo, mais impregnado pelo agir dos fluxos, mais dado ao instantanismo anarrativo e mais virado para desafios da cordem do comunicacional e do artefactual tecnológico.
É nesta série de inflexões que o lugar da cultura, na sua relação com uma espécie de "fundamento da pessoa humana" (à Malraux) - na sequência dos fundamentos divinos que eram antes próprios da “Graça divina”, encontra o vórtice da crise que atravessa e que ontem (estranhamente) mal se sentiu ou pressentiu em todo o debate.
O próprio discurso de Carrilho assentou em três traves-mestras: os direitos (à cultura - e a cidadania singular que tal implica), o apego apelativo e, por fim, a estratégia edificadora (ligada ainda à fase das infra-estruturas, simbolizada pelo programa dos cineteatros provinciais e, naturalmente, pela especificidade do PORA). Ou seja, a eficiência do discurso político-cultural de Carrilho baseou-se no elemento jurídico (vigente), na urgência da visibilidade do produto cultural e ainda numa espécie de incontornável fontismo que, no fundo, corresponde às carências reais do país.
Mas, jamais em todo o debate, se tocou na pedra de toque da crise real por que passa e por que passará, gradativa e inevitavelmente, aquilo a que nos habituámos já secularmente a designar por “cultura”.
Foi esse, afinal, o culminar (ausente) de todo o pobre debate.