sábado, 6 de dezembro de 2003

Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Segunda


(Nos próximos dias, deixo-vos dez Histórias de fotografiar)



E um dia houve em que o fotógrafo descobriu que já não havia limite, nem periferia, nem enquadramento, mas apenas ilhas, segmentos isolados, detalhes estilhaçados pelo olhar. Era o dote enviado pela luz para um único casamento com o instante.

Agora já não existia um fundo preciso para clarificar. Ficava o borrão azulado, uma sebe pouco uniforme e a luz perdida na sua agitada voragem.

Agora já não havia horizonte, nem relevo, mas antes uma convulsão de linhas a desafiarem o sentido da proporção. Agora já não havia interior, nem exterior, mas apenas uma imagem híbrida onde, nas águas do rio mais profundo, sorria o rosto iluminado de Narciso.

Foi nessa altura que o relâmpago surgiu e, de repente, revelou-se, sem mais, a grande imagem no interior do retábulo. Era Narciso a ver e a assombrar-se com o que via nos extremos dessa conformação; era Narciso encantado pelos confins da sua própria efígie; era Narciso a maravilhar-se com a rotação da esfera.

Era talvez o primeiro eflúvio de uma longa iniciação. Um rito ancestral. A luz a perpetuar o corpo.