sexta-feira, 5 de dezembro de 2003

Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Primeira


(Nos próximos dez dias, deixo-vos outras tantas Histórias de fotografiar)

Estava como que imóvel, a concentrar sobre si a voyance, talvez o diferir de uma claridade subterrânea, longínqua. Como a lua do tártaro, sempre negra e hipnotizada pelo centro da terra, pelo cerne da escuridão.

Era assim que o velho esplendor percorria os poros da cartolina já removida pelo tempo. E, apesar de tudo, continuava comprometida com o brilho e com o sigilo que dera corpo ao retrato.

O movimento do corpo é sinuoso, denso, portador de relevo nos contornos, ou no limite por onde passa a imagem do sorriso que devolve ao seu próprio destino a secreta voyance. A magia da imobilidade.

Rosa de Atena, ocre e mármore nocturnos são cores da recôndita cartolina veneziana que mergulhou, há muito, na fatalidade da prata. Aquieta, absorta, deitada no halo quase perdido desse banho de eras, a concentrar sobre si a anamorfose do tempo e o holograma do espaço, a figura incrustrada naquele retrato dir-se-ia ainda a agir. A dançar. A ondear entre ciclos, vagas, vistas.

Ágil, mas estável, ela perdura como a mais antiga das múmias; como o mais polido sílex, como o capilar mais frondoso das origens.

Depois de esmagada nos cristais, a luz transforma-se na impressão do ilimitado, embora se conforme com a figura de um pranto, de uma última cena, de uma irremissível condenação. Aqui e agora, a vida com-destinada.