domingo, 30 de novembro de 2003

Mitos e travessias


Carmen Cisneros

Diz o Flor de Obsessão que "um bom romance" se reconhece logo "na primeira frase", enquanto, no caso do cinema, tudo dependeria da "última cena". Nesta afirmação (já a ouvi várias vezes), o entendimento escatológico cinematográfico equivaleria ao cosmogónico romanesco. Trata-se de uma crença na origem única e, por outro lado, no significado último e derradeiro. Trata-se de uma questão de segurança e também de algum receio face ao lado caótico que enquadra e ocupa grande parte do processo criativo, seja no construir romanesco (onde a intriga é uma parte, às vezes uma ínfima parte), seja na complexidade do processo cinematográfico. Não acredito na religiosiodade das origens únicas e dos significados últimos; creio antes no desenhar plural de possibilidades e no curso das coisas, na media res. É por isso que experimento um romance sempre a meio, antes de o iniciar (faço o mesmo até com ensaios, menos com o cinema por razões sobretudo logísticas). Muitas vezes, talvez a maior parte das vezes, aquilo que é o início de um romance resume-se a um acaso forjado, a uma fachada simulada, ou a um ajardinado convidativo. Muitas vezes, as primeiras palavras de um romance obedecem a um jogo, ou a uma ratoeira bem sinalizada e são amiúde inscritas no momento final de toda a escrita (é normal, é habitual tal acontecer). Já nem falo da montagem cinematográfica e desse fantasma que é o fim (a "última cena"/a última ceia?). Pela experiência que tenho, trata-se de algo que tem atrás de si uma predeterminação tal que pode tornar-se num momento vivo e memorial, é certo, mas jamais num garante (religioso) do significado (enquanto instância última, ou selo derradeiro - na moda corânica). Acredito mais nas travessias do que nos mitos. No fundo, é a diferença entre quem acredita que tudo fica irremediavelmente dito (no princípio ou no fim) e quem acredita que o dito não é o mesmo que o definitivamente revelado, mas tão-só uma modesta parte do não-dito.