quinta-feira, 11 de setembro de 2003

Sinais de calor

De novo o prenúncio do calor abafado, essa espécie de crisálida repartida pelo rasto do nosso descanso. Afinal ainda é Verão, afinal ainda navegamos nesse território de areias imaginárias. Périplo doce. Volta a existir no ar uma inteligência adormecida que prolonga o encantamento do sol. Pena não a conhecermos. Mas ela vela por nós, em vigília. E terá um sabor a frutos vermelhos, líquidos, sem veste, sem pele, sem corpo, sem nada. Vermelho puro. Sem veias. Pousado nas nuvens, vagando pelo crepúsculo como a cobra minúscula que adormeceu no quintal, há três dias. Calor abafado. Terra de ninguém, ponto morto do tempo. A felicidade a crepitar por trás das palavras, na falha das palavras.


O 11 de Setembro revisitado - 6

E no entanto, hoje, é já o 11 de Setembro. Dedicámos-lhe cinco posts nos últimos dias. E reiteramos agora o essencial: o mundo mudou, ou seja, aprofundou de modo decisivo a mudança que vinha do pós guerra-fria. Os campos dividiram-se e demarcaram-se como não chegou a acontecer de maneira tão declarada na década de noventa, aberta à ambiguidade, ao fim das antinomias e ao pensamento e sentimento "Pós". Mais do que esquerda-direita, a nova delimitação de campos veio tornar sobretudo claro o triângulo democracia-liberdade-justiça como o esteio a defender; e com este esteio tornou-se evidente a necessidade vital de defesa do ocidente, ou seja, o locus que viu nascer o que são hoje as sociedades abertas, no fundo o inimigo de muitos (não só dos pan-terroristas suicidários, mas também das contraculturas cegas e autofágicas que respiram o privilégio de viver no ocidente).
O 11 de Novembro está em curso e atravessa diariamente as nossas vidas; Não se circunscreve, portanto, ao WT Protest.
Hoje em dia, depois do 9/11, apenas vejo como princípios políticos essenciais a perseguir o tal triângulo-chave democracia-liberdade-justiça, o verdadeiro alicerce da abertura e do futuro do mundo, e, para além dele, todo o tipo de démarches que aproximem economicamente os mundos radicalmente diferentes que habitam a polis global. Mas que essa solidariedade mundial não rompa os tecidos económicos e sociais, nem atraiçoe a necessária reserva que o ocidente é no mundo. Por isso, em Cancun, acho essencial que os EUA e a UE contribuam para a descida relativa de alguns subsídios à agricultura. Mas apenas o suficiente para dar um sinal aos mercados ocidentais e, ao mesmo tempo, para contribuir para uma melhoria das condições de vida no chamado terceiro mundo (onde a falta generalizada de democracia e de regras básicas acaba por tornar quase impossível um programa planetário de superação gradativa das desigualdades). A igualdade não pode ser um programa abstacto, apenas visível na cabela de iluminados, e imposto à sociedade. A igualdade é uma utopia e deve ser seguida tendo sempre como alicerce a democracia, a liberdade e a justiça.
A igualdade é um caminho, é o outro lado de um processo, mas não pode ser o álibi de uma maquinação intolerante (seja ideológica, terrena e racional, seja ela escatológica, paradisíaca e divina).
O 11 de Setembro exige de nós uma posição, uma superação de perconceitos e o fim do pensamento anti. No lado do terrorismo, não há pensamento anti-qualquer coisa. Há apenas desígnio de morte. Essa cultura do estertor não é compaginável com o diálogo, com a democracia e muito menos com supostos valores a defender.