domingo, 28 de setembro de 2003

O fim é sempre uma metamorfose - 2

A morte e o fim, mais do que pontos absolutos, têm sido insistentemente descritos, nas escritas do Ocidente, e não só, como um tornar-se em qualquer coisa. As últimas e miríficas etapas das escatologias e das ideologias consubstanciavam (e as suas obedientes literaturas simbolizaram-no) a própria perfeição como uma espécie de relato de outra vida que se auto-regularia, dilatando, idealizando, anamorfoseando de certa forma, o tempo efémero e sempre insuficiente do presente. J.-C. Carrière chegou a caracterizar o fim dos tempos como “la fin de l´insupportable contradition” entre “le temps divin (surpême, absolu) et le temps humain (limité, relatif) ”. Só uma decisiva prática de atenuação ou corrosiva aproximação entre estes duas ordens (S. Eisenstad chamou-lhes “transcendente” e “mundana”, ambas criadas no último milénio pelas “civilizações axiais” ) é que poderia, com efeito, evitar que o fim continuasse a ser representado como uma verdadeira e paradoxal metamorfose. Certas formas actuais de compreender o tempo inserem-se ainda claramente nesta estratégia de manutenção do fim, enquanto estádio simultaneamente afastado e durável. Lendo F. Kermode, apercebemo-nos de que a crise é indubitavelmente um dessas formas que é "central no nosso empenho em prol do entendimento do mundo” . Mais do que o discurso do pós-qualquer coisa ou do fim de tudo - o que configura a tal aura apocalíptica que veio povoar um certo vazio que se desenhou, entre os limites pós-estruturais e o limiar do digital, é o discurso da crise que nos permite, melhor do que qualquer outro, perpetuar o transitório.
Nada é já como era, inapelavelmente.
Ficamos, pois, com a imagem fraterna da crise para dar corpo a esse desconsolo ou a esse spleen da alma.