segunda-feira, 8 de setembro de 2003

A crise do ensino

O meu colega Eduardo Esperança enviou-me um artigo da autoria de Pierre Jourde (professor da Universidade Stendhal, Grenoble III) que faz eco da grande crise por que passa a universidade em França, mas não só. Num mundo cada vez mais comprimido não podemos continuar a pensar que "com o mal dos outros podemos bem". Ou seja, se o 11 de Setembro se está a passar em todo o mundo, se a questão do Iraque é obrigatoriamente uma questão do nosso bairro global, também os grandes problemas da justiça planetária ou do ensino têm que necessariamente dizer respeito a todos, em cada momento. Leiamos, pois, alguns extractos do texto de Pierre Jourde para reflexão. Penso que, infelizmente, grandes partes dos males decsritos também se revelam por cá. Às vezes, hiperbolicamente:

A universidade francesa mor­reu. Morreu como universi­dade, ou seja, como comuni­dade científica em que a investigação se associa a um ensino es­pecializado de alto nível. Sobram al­guns estabelecimentos pedagógicos pós-ensino secundário. Mas a universi­dade foi morta pela mediocridade.

Postos de trabalho “secundarizados"

Pensa-se que a universidade emprega os melhores professores. Isso já foi verdade, mas é-o cada vez menos. A es­pecialização desaparece em proveito de uma docência pedagógica ou didáctica. Neste âmbito, o ano de 2003 será me­morável: em letras, não foi houve qual­quer novo posto de trabalho na área da investigação com a categoria de "maî­tre de conférences" em literatura do sé­culo XIX, ao mesmo tempo que houve uma vaga de colocações em "técnicas de expressão". Trocado por miúdos: a universidade não passa de uma espécie de liceu onde os professores têm de esforçar-se por ensinar os alunos a sa­ber construir uma frase. Muitas matérias para as quais não há nenhum docente universitário titular são entregues a pro­fessores provisórios pedidos de em­préstimo aos liceus. Ou então recrutam­-se professores agregados, escravos da universidade que têm de assegurar o do­bro de horas pelo mesmo salário, que andam sempre cheios de trabalho e não têm tempo nenhum para se dedicarem à investigação.

Carências do recrutamento

Quando se abre concurso para um verdadeiro posto de trabalho, o "lo­calismo" galopante implica que ele seja atribuído, não à pessoa mais meritória, mas àquela que já lá está e que previa­mente foi prevista para o ocupar. Os concursos tendem assim a tornar-se fal­sos concursos. Os candidatos bem podem enviar dossiês volumosos, atra­vessar o país de lés a lés, cheios de es­perança e de angústia, porque acabam por fazer mera figuração democrática num espectáculo em que tudo está an­tecipadamente decidido. 0 título do posto de trabalho corresponde de modo muito preciso à tese do candidato local. Um reitor formado em electrotécnica pode muito bem meter-se numa comis­são de literatura para que o candidato local seja eleito. Um conselho de admi­nistração pode perfeitamente anular a eleição de um candidato que não é do sítio. Quem manda pode fazer eleger a mulher, o filho, o cunhado, ou o filho do farmacêutico local, sem ter em conta as qualidades do respectivo currículo - porque, se o candidato não for pessoa conhecida, não poderá ser o melhor as­pirante. A reforma do antigo ministro da Educação Claude Allègre facilitou uma tal evolução. Antes disso, todos os professores eram membros de pleno di­reito das comissões de recrutamento, um sistema simples, eficaz e que limi­tava os riscos de ruptura. Os serviços da Educação Nacional têm o génio da com­plicação. Actualmente, estas comissões são eleitas a partir de listas, coisa que as reduz muito e facilita o domínio que uns quantos indivíduos podem exercer sobre os recrutamentos. 0 projecto de des­centralização só fará agravar as coisas.

Pobreza das instalações

Qualquer pessoa que tenha frequentado as universidades italianas ou inglesas pode avaliar a que ponto a maioria dos professores e dos estudan­tes vivem em França num ambiente de fealdade quotidiana. Edifícios hedion­dos, vetustos, cinzentos; salas de aulas e escritórios em número insuficiente, pa­tibulares e a abarrotar; míseras bibliote­cas; campus sinistros, imundos, seme­lhantes a bairros periféricos, afastados dos centros das cidades, sem vida fora das aulas. Ao que parece, a urgência consistiria em alinharmo-nos pela Eu­ropa na organização dos estudos. E se imitássemos a Europa no tocante à qua­lidade das instalações universitárias?

Mesquinhez financeira

Os colóquios representam um ele­mento importante da vida univer­sitária e da difusão dos saberes. Mas já não há dinheiro para isso. A organiza­ção de tais iniciativas e a publicação das actas tornou-se, para os professores que por isso se responsabilizam, uma esgo­tante caça ao subsídio, um exercício de preenchimento de quilos de dossiês. Os organismos municipais ainda vão con­cedendo algumas subvenções, com a condição de o tema ser local. Se alguém quiser organizar um encontro interna­cional sobre um assunto internacional numa universidade de província, será obrigado a apelar a muita imaginação e esperança. Se o conseguir, terá de rece­ber os congressistas num parque de cam­pismo ou em hotéis manhosos. Deverá, além disso, exigir o pagamento de ins­crições aos seus convidados, os quais, por conseguinte, terão de pagar para tra­balhar. Para um conferencista, o regula­mento prevê um máximo de 38 euros no tocante ao alojamento (incluindo o pequeno almoço) e de 15 euros quanto a despesas de alimentação. A mais sim­ples deslocação, para se participar num júri de tese ou numa comissão, implica o preenchimento de documentos tão va­riados como numerosos, ficando o inte­ressado à espera do reembolso durante semanas ou meses. Alguns, cansados de tais coisas, acabam por renunciar.

Reformas ininterruptas

A universidade parece-se com uma casa cujas obras nunca acabam. Todos os anos ou de dois em dois anos as obras recomeçam, arranca-se a al­catifa, atira-se uma parede abaixo, acrescenta-se aqui mais uma torre, acolá um anexo, um andar noutro sítio, de tal jeito que em vez de ficarmos com um edifício funcional e habitável, vi­vemos num inominável mamarracho, sempre perante riscos de desmorona­mento, a tropeçar no cascalho das de­molições. Cada novo ministro ou cada novo con­selheiro de ministro acrescenta uma nova disposição legal, inventa uma co­missão suplementar, concebe a sua re­formazinha pessoal, tudo coisas que vão implicar mais reuniões, assem­bleias, circulares, relatórios, resumos, avaliações, interpretações e glosas dos textos sagrados mas anfigúricos publi­cados no Diário da República. Uma vez tudo isso terminado, desfaz-se o que foi feito e recomeça-se. Ainda mal as pes­soas tiveram tempo de compreender os meandros da nova reforma, já outra vai ter de as ocupar, num incessante e monstruoso dispêndio de energias.

Burocratização

Doravante, ser professor universitá­rio significa sobretudo ser um bu­rocrata. Duas coisas obcecam a admi­nistração central: o controlo e a invenção de novas estruturas. Com tanto bizantinismo e tantas contorções, a organização dos estudos, dos exames e das notas tornou-se de tal maneira confusa que os estudantes não enten­dem patavina - e às vezes os próprios docentes só com esforço percebem. Chegamos assim ao seguinte paradoxo: os responsáveis, a pretexto de facilitar os estudos, tornam-nos opacos. Deste modo, os meios substituem quase in­teiramente os fins. A organização de tudo pelas normas eu­ropeias justifica agora toda a espécie de reformas. Mas na particularidade do sis­tema francês não se toca, ou seja, no seu triplo ensino superior: Universi­dade, Grandes Escolas, Instituto Uni­versitário de Formação de Professores do Ensino Básico e Secundário (IUFM). As grandes escolas permitem que as eli­tes fujam da mediocridade universitária; os IUFM caricaturam os defeitos da universidade, tendo-se tornado enormes e ruinosas fábricas burocráticas onde a maior parte da energia se perde em reu­niões, processos e relatórios, onde os estudantes se queixam regularmente (mas em vão) de ter de suportar maté­rias muitas vezes ineptas, demagógicas e sem utilidade real.

Obrigações de trabalho acrescentadas

Desde 1981, quando de uma só pe­- nada foram aumentadas 50 por cento as obrigações de ensino, os do­centes universitários submeteram-se à vaga das reformas, à multiplicação do número de alunos, à lenta degradação das suas condições de trabalho. Agora, na maior parte dos casos, o docente tem de ensinar, preparar as aulas, corrigir os testes, receber os alunos, participar nos júris de fim de semestre, em toda a es­pécie de reuniões; tem de se informar sobre a nova reforma em curso e de ten­tar aplicá-la, de participar em comissões de especialidades (relatórios, dossiês, reuniões), em diversas comissões na­cionais (idem), na orientação de teses ou de mestrados (por vezes às dezenas), de participar nos respectivos júris, de preencher processos verbais, relatórios, dossiês a respeito de tudo e de nada, de assumir tarefas administrativas - dirigir o ano lectivo, o departamento, a uni­dade de formação e investigação, a uni­versidade, os conselhos científicos ou de administração, o conselho de estudos e da vida universitária, fazer peritagem de exames e dossiês, presidir júris de fim do ensino secundário, dirigir cen­tros de investigação, revistas, colecções (e portanto examinar manuscritos), as­sistir a seminários e colóquios, e talvez ocupar-se da respectiva organização, e enfim, se lhe restar algum tempo, ser investigador, ou seja, ir a bibliotecas, escrever livros ou artigos. 0 professor universitário vê-se assim muitas vezes perante duas hipóteses: ou renuncia a toda e qualquer investigação para se de­dicar ao ensino e à burocracia, ou eli­mina a sua vida privada. O sistema já não concebe que o profes­sor do ensino secundário ou universitá­rio tenha tempo. Já nem sequer concebe o ingrediente necessário à reflexão, a li­berdade. Um investigador já não pode fazer investigação sozinho ou com co­legas escolhidos, tem de integrar-se em equipas (que são mais umas pequenas máquinas administrativas), bem como nos seus programas de investigação; ou faz isso ou morre. E normal que lho pro­ponham, mas que isso se torne uma obrigação é absurdo. Nada melhor para eliminar radicalmente qualquer possí­vel originalidade. Assim sendo, por falta de tempo livre para dedicar à reflexão e ao trabalho a longo prazo, por falta de simples liber­dade, há uma categoria da sociedade francesa que está a desaparecer: o inte­lectual. Quem poderá fazer aquilo que a administração não previu nem plani­ficou que ele fizesse? Quem poderá ainda dedicar-se à escrita de um grande romance, de um ensaio importante? A proliferação burocrática está a substi­tuir o intelectual ou o criador pelo pe­dagogo ou pelo funcionário. Vamos ter a vida cultural que as reformas do en­sino nos prepararam.

Diplomas desvalorizados

Com o enorme aumento dos seus efectivos, a universidade foi con­frontada com o insucesso maciço que ocorre no 1° ano. Os reformadores recusam-se a admitir que este insucesso se deve a lacunas profundas dos estu­dantes, herdadas do ensino primário e secundário, e que todo o sistema está em causa. Não afirmamos com isto que "o nível baixa" nem que os estudantes são globalmente incompetentes. Mas qualquer professor do ensino superior sabe perfeitamente que as universida­des tiveram de receber massas de estu­dantes incapazes de acompanhar uma aula rudimentar, de redigir um texto simples ou de o compreender. Os responsáveis agiram de maneira a que pudessem terminar o ensino secun­dário estudantes cujo nível de incultura é de pasmar, que não dominam a sin­taxe, a ortografia, o vocabulário. Se­gundo as autoridades, de que muitos jornalistas especializados se fazem eco, a solução consistiria em reorganizar os exames, as disciplinas e as práticas de ensino. Primeiro exigiu-se que os docentes uni­versitários se mostrassem mais pedago­gos. Coisa que corresponde, por obses­são pedagógica de princípio, a ignorar a realidade do ensino. 0 mandarim que debita o seu discurso sem procurar fa­zer-se entender tornou-se ave rara. Há muito tempo que os universitários ex­plicam e simplificam. Mas ultrapassan­do-se um certo grau de simplificação, aquilo que se quer ensinar deixa de ter conteúdo e significação. Depois os primeiros ciclos universitá­rios foram desprovidos de quase toda a especialização, sendo os exames orga­nizados de tal forma que as más notas pudessem ser compensadas ao máximo. Actualmente, um estudante de letras que apesar de todos os esforços "peda­gógicos" não sabe conjugar um verbo do terceiro grupo, que ignora os rudi­mentos de qualquer cultura literária, que confunde Victor Hugo e Zola, a Revo­lução Francesa e o surrealismo, poderá obter um diploma de estudo universitá­rio geral (DEUG) de letras juntamente com informática, desporto, técnicas de expressão e uma opção de cinema. Posteriormente considerou-se - mais uma ideia genial - que o insucesso es­colar resultava de uma má orientação. As autoridades tiveram mais uma vez de fazer habilidades com os horários e a organização dos estudos para prever trocas de cursos e passagens de uma fa­culdade para a outra. Tudo porém evi­dencia que o insucesso de massas pro­vém das lacunas de base, as quais revelam os mesmos problemas em geo­grafia, filosofia, inglês ou psicologia. Para se conformarem com o molde eu­ropeu, os estudos foram "semestrializa­dos" (ou seja, foram duplicados os pe­ríodos de exame). Por outras palavras, jovens que saem do secundário, que não sabem nada da universidade, dispõem de doze sessões de aulas, em vez de vinte e quatro, antes de passarem o exame. E fácil imaginar a que ponto pode também semelhante medida redu­zir a percentagem de insucesso...

Ilusão Demagógica

O insucesso escolar suscitou em grande parte uma espécie de as­sistência social. É preciso recomeçar tudo pela base: saber como tomar no­tas, como utilizar uma biblioteca, como construir uma frase, como fazer con­cordar um particípio. Multiplicam-se as muletas, os amparos, os exames de re­cuperação, as aulas de metodologia. Evita-se ao máximo ensinar a disciplina propriamente dita. Todos os anos se in­ventam novos truques com vista a me­lhorar as estatísticas. Os resultados des­tas permanentes contorções para a todo o transe se obterem boas percentagens de êxito escolar consistem na criação duma gigantesca ilusão. Todo o sistema escolar, desde o ensino básico, confunde qualidade e quanti­dade. As pessoas regozijam-se com um melhoramento puramente estatístico, que não corresponde a competências reais. Cada vez mais jovens prolongam os seus estudos numa universidade que já não tem saídas profissionais a ofe­recer-lhes. Os diplomas são desvalori­zados pela demagogia que tende a excluir toda e qualquer selecção, ofe­recendo poucas perspectivas profis­sionais claras, pelo menos nos secto­res generalistas. Restam os concursos. Mas nestes a selecção mantém-se, ob­viamente. E as grandes escolas obtêm a maior parte. De maneira que muitos jovens terão assim sido encaminhados para becos sem saída. Quanto aos referidos IUFM, estes ofe­recem a muitos estudantes a perspec­tiva de se tomarem professores de es­colas primárias ou do primeiro ciclo do secundário, se tiverem êxito no con­curso. Mas nesta instituição de forma­ção acentua-se cada vez mais a teoria do ensino em detrimento dos conteúdos das matérias. Este sistema, portanto, formará professores primários repletos de didáctica e de psicologia infantil. Mas não formará melhores pedagogos; criará docentes aptos a fazer trabalho de animação e a perpetuar o embuste que articula todo o sistema, mas que se­rão desgraçadamente incultos. E tudo recomeçará, desde o princípio.


De facto, a reflectir...