sexta-feira, 22 de agosto de 2003



Sobre a questão lançada aos blogues, antes de ir para a praia - ? – deixamos aqui registo de três comentários com os respectivos comentários:

Escreveu a Espuma dos dias:

Claro que sim. Se o tema for assunto no âmbito dos blogs portugueses terei
todo o gosto em participar.Julgo que em português, está quase tudo por dizer sobre a escrita autobiográfica.

Escreveu o Guerra e pas:

A Literatura, como bem sabemos, reconcilia-nos o mundo. Não com o mundo, mas o mundo. Atrevo-me a dizer que quando estamos a ler, estamos de facto à procura da nossa resiliência, da nossa capacidade de nos esticarmos e, como os elásticos, de acumularmos energia – vida – que possamos consumir. Até à próxima leitura.

Essa reconciliação não existe como coisa já dada. Há uma codificação da literatura que no-la permite entender de determinada forma. Essa forma é pós-iluminista e envolve a escrita e a crírica, a expectativa e a retórica, o amplitude que preenche a sua ficcionalidade e os filtros poéticos que a limitam dentro de certos parâmetros. É na mudança abismada de mundos que vivemos nas últimas duas décadas que creio que essa codificação da literatura irá entrar em estado de turbulência. Parte dessa turbulência é já parte do corpo textual que se está a agitar e a crescer nos blogues. Será ?

Na neurociência, e nas ciências psi, há um curiosíssima visão do nosso mundo: vivemos no passado. Um passado de pedaços segundo, o tempo que demoramos desde a captação do mundo até à sua digestão. E nas ciências mais exactas, mas amplamente especulativas, aquelas que querem compreender e explicar o universo, há uma teoria, incapaz de prova, que congela a nossa ideia de tempo como qualquer coisa que passa, para dizer que na realidade cada instante das nossas vidas corresponde em si mesmo a um universo. Assim, viveremos de fatia em fatia: cada correlação de nós com o mundo é um carpaccio. Haverá um universo em que nos apaixonamos; um universo no qual vamos abrimos o livro que mudará os próximos universos. Os nossos.

Penso que as neurociências estão a dar passos decisivos para a compreensão dessa coisa que se opera no agora aqui sempre diferido, é certo, entre o terreno do proto-si e as sucessivas representações que nos conduzem à montagem do filme na consciência alargada. O meu ensaio Músicas da Consciência sobre Damásio bate nessa tecla, precisamente.

O livro começa a subir dentro de nós, a ser menos um livro e mais um livro que ficará connosco, quanto mais sentirmos que quem escreve é capaz de escrever aquilo que lhe é intolerável. O problema é que até nós, o leitor mais exigente do mundo, o leitor que mais ambiciona ser leitor, estamos embriagados pelas contingências e imobilizados pela nossa própria armadura de prévios. E quem escreve sabe isso e portanto tende a escrever do que não lhe interessa (ou que lhe permite refúgio ou adiamento), como quem coloca placas de sinalização pelo livro todo. Os locais, os ambientes, as descrições, as piscadelas de olho culturais, as personagens acessórias, a cinematografia possível de uma história que recebemos por transfusão. Na maioria dos casos, são os sinais indicativos que ofuscam o resto e esse resto mirra irremediavelmente. Ora esse resto será, em princípio, da ordem do intolerável e, talento e humanidade existam, será um intolerável mais banal que terrível, porque a nossa vida é bem mais comum do que aquilo que gostamos de pensar.
O erro está, talvez, talvez, em ler um livro como um todo. Ou por outra, ler um livro é ter de esperar tudo isso. Num restaurante, por melhor que seja, não nos escapará a visão do prato sujo, da mousse a desfazer-se, da garrafa vazia e tombada. Cabe-nos desejar saborear apesar de tudo.
Num blog há mais provocação ao intolerável do outro que assunção do nosso próprio intolerável. Nesta medida, e até ver, os blogs têm pouco de literário. Isto com excepção de alguns posts, sem surpresa, os que mais entram em cada um de nós e se aninham dentro daquilo que somos.

Talvez o problema não esteja no objecto livro, mas na literatura. Era aí que a questão se iniciava. “A provocação ao intolerável” no confronto com o quotidiano mais dessacralizado e desideologizado é, na óptica do estudo de Miguel Real, um dos dados que aproximam a literatura actual de novas tendências ainda não codificadas a vir.

Enfim, acerca desta questão, damos ainda conta da apologia dos cruzes canhotos:

Sobre a questão lançada pelo Miniscente, os bem-parecidos cruzes canhotos, unanimistas por tradição, dizem que “toda a gente concorda”, para além de que lêem o “pipi” e afirmam solenemente que se assumem como “grunhos” na matéria.