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segunda-feira, 23 de julho de 2007

Uma história familiar

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Parece que estou a vê-lo, aventuroso, a viajar de bicicleta entre Évora e o Redondo, corre o ano de 1918 e o armistício que há-de pôr fim à Primeira Grande Guerra Mundial ainda está para vir. Ei-lo de bicicleta por terras de S. Miguel de Machede e pelas infinitas curvas da Valeta; vai célere, leva consigo alguma bagagem e sobretudo um turbilhão de memórias difícil de conter e de contar. No fim de contas, antes mesmo de chegar são e salvo ao seu destino, já foi rezada missa por sua alma e, apenas por sensatez, é que não terá levado a cabo o sonho de fazer uma grande surpresa e… aparecer, sem mais, perante todos os seus, quando estes já o consideravam a viver noutro mundo.
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A aventura havia começado meses antes, no próprio cais de embarque dessa Lisboa ainda a cheirar a Odes pessoanas e ao fado castiço dos Boqueirões. Por ordens superiores, afastara-se durante algum tempo da azáfama e da lide dos dois grandes navios que estavam a levantar âncora – já de vapores ao rubro e escadas quase içadas – para ir cambiar dinheiro português. De regresso, cumprida a rápida missão, logo verificou que apenas o barco reservado à cavalaria ainda permanecia encostado ao cais; o outro – que seria o seu – deslocara-se entretanto na direcção da barra para evitar uma iminente revolta a bordo. Seguir-se-ia a viagem no barco errado, embora, segundo ditam as crónicas, a mesma tivesse sido calma e bem mais rápida do que o previsto.
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No porto de Brest, descontraído e ao sabor do vento, é ele quem acaba por receber no quebra-mar o barco que transporta o contingente português com destino à fatídica região da Flandres. As altas patentes já o davam, a essa hora, como desertor, mas também como actor de possível sumiço. Afinal, compreendidos os factos, tudo se compõe e ele acaba por cumprir, como previsto, no árduo corrupio das transmissões, um serviço vital para aquela longa faixa que vai do sul de Lille, ocupada pelos alemães, a Laventie e à Boulogne marítima. É nesse teatro de guerra que os gases entram subitamente em acção, lesando-o de forma algo irremediável.
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Na galeria dos feridos, por artes de sortilégio, o destino troca o número das macas e ele acaba por seguir, na sua mudez mais involuntária, para o hospital dos ingleses. É muito bem recuperado nesse território da dor, onde o 'não dito' supera tudo aquilo que se poderia augurar, ou tão-só dizer. E é apenas quando recupera a lucidez da voz que, finalmente esclarecido o sentido do acaso, ele acaba por regressar aos cuidados, aliás escassos, do exército luso. Durante este tempo todo, em Portugal, é dado como desaparecido, mas agora, com a preciosa ajuda de um general, consegue finalmente obter a justa autorização de regresso a casa.
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Anda pela Paris de Gance e Delluc, galanteia uma loura no consulado português, desce no Sud Express até à terra que Buñuel ainda não trocou pela Gália e reentra, por fim, no país pobre e sidonista que é o seu. Em Lisboa, decide fazer um telegrama para o Redondo a anunciar que está de volta; ou seja: da morte imaginária para a vida, e de vez. Parte do Terreiro de Cesário para a Évora florbeliana e daí, numa bicicleta que desconheço a origem, atinge, entre poeiras, a sua vila natal, o Redondo. O feitiço de pródigo andarilho levá-lo-á, não muito tempo depois, para Vila-Viçosa. E é aí que começa parte de uma outra história que é, hoje em dia, também a minha.
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Diga-se que este foi – e é – um dos mil enleios aventurosos do único avô que não cheguei a conhecer em vida, de seu nome José Carmelo, primo, entre outros, do tenor e também viajante Tomás Aquino Carmelo Alcaide que, três anos mais tarde, também poria fim à vida militar para abraçar uma singular carreira no mundo da ópera.