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segunda-feira, 4 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 22


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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A arquitectura da felicidade
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Alain de Botton tem má fama. Sobretudo nos círculos canónicos, onde é visto como besta negra da filosofia popular. Preconceito idiota. Quando leio Alain de Botton, recordo sempre as palavras do escritor Joseph Addison na original «Spectator»: se Sócrates trouxe a filosofia do Céu para a Terra, é necessário também trazer a filosofia das bibliotecas para os cafés. Alain de Botton não é filósofo; é divulgador de. Que o mesmo é dizer: relembra velhas verdades a novos auditórios. Cumpre a função.
E é precisamente de «função» que nos fala o seu último livro, The Architecture of Happiness (Hamish Hamilton, 280 págs.), a melhor colheita do autor até ao momento: cuidado na forma, informado no conteúdo. E particularmente devastador para os excessos modernistas do século XX, que sacrificaram a natureza humana à beleza racionalista da função arquitectónica. Que nos diz Alain de Botton? O mesmo que Ruskin um século antes: a arquitectura não se limita à qualidade técnica que exibe; a arquitectura é uma arte humana e, como todas as artes humanas, lida essencialmente com a natureza dos homens em sociedade. Tradução: se um arquitecto acredita que o seu «métier» é semelhante ao de um poeta ou pintor, ele passa ao lado do essencial. A arquitectura tem pouco a ver com a originalidade solipsista de outras expressões artísticas. Pior: na busca da originalidade arquitectónica existe sempre uma pulsão autoritária - a necessidade de impor colectivamente o que apenas nos pertence individualmente. Não preciso dar exemplos, embora as experiências urbanísticas do nosso Siza fossem um bom exemplo: a Avenida dos Aliados, no Porto, um espaço tradicionalmente de encontro e fruição, está hoje convertido num deserto de cimento por onde se passa mas não se fica.
Alain de Botton também oferece um caso: na década de 20, Henry Frugès, industrial francês, resolveu encomendar a Le Corbusier um conjunto de habitações para os seus operários. Le Corbusier correspondeu à encomenda com universo utilitário e concentrado: habitações despojadas; janelas rigorosamente rectangulares; total ausência de «folclore decorativo», para usar as palavras do próprio. O resultado, do ponto de vista funcional, é perfeito. Mas perfeito na cabeça de Le Corbusier.
Na realidade, os operários que passavam 12 ou 14 horas a trabalhar numa fábrica desejavam mais do que «função» e «racionalidade» na altura de regressar a casa. Por isso começaram, com o passar do tempo, a rasgar janelas onde só havia cimento; a plantar pequenos jardins; a acrescentar portadas de madeira; e a desfigurar, para horror do arquitecto, o sonho abstracto que o animara. Ainda hoje é possível visitar Pessac, no sul de França, e contemplar o lugar do crime: o lugar dessa revolta humana contra os abusos do racionalismo modernista.
Longe de mim sugerir aos portuenses que saiam à rua e, confrontados com uma paisagem lunar, desatem no cultivo de uma horta. Relembro apenas que os sítios que habitamos devem expressar a forma como vivemos. E nem sempre espaços perfeitos, estética ou funcionalmente, são uma promessa de felicidade. Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para as nossas próprias casas: espaços imperfeitos que se vão moldando ao nosso corpo, e ao corpo das nossas rotinas, como se fossem peças de vestuário que habitamos por dentro. E que não trocamos por nada.
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)