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segunda-feira, 7 de maio de 2007

Folhetim - 12

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA

por Almeida Faria
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"Cheio de má consciência dei comigo a pensar que nem sequer me lembrava do paradeiro de muitos dos meus quadros, que se separam de mim mal os termino e vão sem cerimónia à sua vida, como se nunca me tivessem pertencido. Não me pertencem, realmente, mas duvido que isto diga respeito a alguém. Ainda menos àquele fantasmático anfitrião a quem só as perguntas interessavam, não as respostas. Apostado em provar que a minha presença o incitava ao solilóquio, confessou: "Nas noites em que me desencontro de mim mesmo pego num livro qualquer e volto a entender a minha velha devoção aos livros, à sua capacidade de me fazerem sonhar no meio das páginas. Nas minhas fases de bibliofilia moderada encontrei bibliófilos que não liam nada, folheavam para verem a data de impressão, a qualidade do papel, o seu estado geral. Ou, quando liam, de cada livro compravam dois exemplares, um para lerem e o outro para ser posto na paz das prateleiras, intacto e virginal. Vinha isto a que propósito? Ah, sim, a propósito dos elogios que o poeta Perse fez ao memorial, escrito directamente em francês, das minhas visitas à Transcaucásia. Dizia Perse que eu seria escritor, se insistisse na escrita. Lisonjeava-me enquanto seu mecenas, mas é verdade que li imenso. Pouco a pouco, porém, a felicidade associou-se-me ao olhar. Até os livros me interessavam mais com encadernações excepcionais. Não por novo-riquismo mas porque me contentava com olhar. Por isso me convém a minha existência definitiva, sem desejo nem dor nem doença. Este meu aspecto físico é apenas aspecto, nada mais. Era o aspecto que eu tinha ao mudar de estatuto e de estado. Sou mais dono de mim desde que me limito a contemplar obras-primas. Mas o senhor está a pensar que não o deixo dormir e que abuso das leis da hospitalidade, o que aliás é o caso. Tenho a atenuante de nem todos os dias apanhar por aqui um artista disposto a ouvir-me.»Nitidamente fatigado fez uma pensativa pausa, que aproveitei para me sentar, já mal sentindo as pernas, os pés gelados, o peito e as costas em pele-de-galinha. Ele porém interpretou o meu sentar-me como convite a novas divagações, que retomou de um modo cada vez mais caótico e errático: (...)"
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e(continua)
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Próximo episódio: “Só um vaidoso escreve frases destas. Hugo, evidentemente. Em mil novecentos e dezanove, no ano da mais monstruosa matança de arménios, comprei o torso de Hugo esculpido por Rodin em mármore branco, colocado a três quartos e virando um pouco a cabeça para nos olhar de frente. Desde aí associei Hugo ao massacre. Esquisitices, não ligue.”