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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Fernando Ilharco*)
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Terrorismo Pós-Capitalista (I)
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Em Lisboa caiem as primeiras horas da madrugada. Na América, já depois do jantar, as cadeias internacionais de televisão estão em velocidade de cruzeiro. Nos estúdios da CNN, em Atlanta, o computador do editor de serviço indica uma chamada telefónica com origem no Golfo Pérsico. John, a quem chamavam ‘falcão’ por se ter celebrizado com os directos nocturnos do outro lado do mundo em cima do prime-time americano, tem a linha 9 a piscar – a 9 não utiliza os circuitos dos repórteres e dos correspondentes das equipas da CNN por todo o mundo. É uma linha privada, directa, só utilizável pelo ‘falcão’. É das linhas mais seguras da estação, protegida contra escutas, gravações, “contra a CIA, o Pentágono e a Internet", como costumam comentar.
"Do Golfo !?… Não tenho "pendentes" no Golfo... quem é que me quer falar do Golfo? Porque não vai para a bicha como os outros...."
No caos que envolve o fecho dos noticiários, entre ecrãs e mais ecrãs, numa torrente de decisões, o “falcão” colocou a chamada nos auscultadores.
- … fala o movimento para a libertação do Sul ... exigimos que nos coloquem de imediato no ar... têm 60 segundos…
A história mais ambígua, mais mal contada e mais decisiva de sempre estava prestes a começar.
Nesse momento numa outra linha, o Pentágono solicitava que a chamada fosse colocada no ar. O “falcão” pressentia que algo estava para acontecer. Num segundo tudo mudou: de uma noite sem história para a maior crise de sempre. Enquanto chamava o Bill e o Manolo, os coordenadores da noite, o “falcão” disparou o spot “something fast”. Nunca havia sido usado, mas desde há uns anos estava pronto a ir para o ar. Sob o indicativo “breaking news”, e um fundo azul do planeta suspenso no espaço, a vermelho destacava-se o subtítulo “something…”
A confusão no estúdio era imensa. As chamadas não paravam e os acontecimentos sucediam-se vertiginosamente. Na linha 9 a chamada misteriosa aguardava. O sistema telefónico indicava tratar-se de uma chamada de um telefone móvel por satélite, algures na região do Golfo Pérsico/Médio Oriente.
- ... é uma brincadeira idiota, vamos avançar com a peça sobre o México ... - referiu Bill, prontamente interrompido por Manolo. Tinha passado um minuto e a Casa Branca estava em linha pressionando para que colocarem a chamada no ar: “vão colocar no ar a chamada dos tipos. Deixem-nos falar à vontade... tentem mantê-los a falar o mais tempo possível... esta linha fica aberta para nós...”
O “falcão” colocou de novo a 9 nos auscultadores e preparou-se para a colocar em emissão. “… estamos prontos…”, disse ele.
A emissão avançou... “CNN breaking news... something… vamos colocar no ar uma chamada telefónica feita em directo... a partir do Golfo Pérsico...”
Durante alguns segundos parecia o vento e o mar, cortados por sinais electrónicos.
- “... em nome dos povos explorados do Sul... exigimos aos fascistas do Ocidente que cumpram três condições: terminem para sempre as transmissões de televisão por satélite para o hemisfério Sul; libertem os nossos irmãos prisioneiros e escravos na Europa, na América e na Ásia; abandonem em definitivo todos os territórios ocupados no Médio Oriente, na América, em África e na Ásia... têm 24 horas... não pretendemos negociar coisa alguma... se falharem, o vosso novo ano começará como nunca pensaram ser possível... três cidades ocidentais serão atingidas por mísseis nucleares... dentro de 30 minutos queremos ver os primeiros sinais de boa vontade da vossa parte...”
Enquanto isso, no Pentágono o gabinete de choque denominado "a derradeira chantagem" ouvia a chamada. Washington estava ao corrente. Há semanas que os satélites espiões registavam os fluxos de dados que entravam e saíam de um pequeno barco no Golfo Pérsico. Tratava-se de um grupo extremista, sem ligações politicas de peso, praticamente isolado e seguramente sem capacidade de lançar mísseis nucleares. No entanto, todos os cuidados eram poucos. Chantagem é chantagem e o que se passou nunca chegou a ser inteiramente esclarecido.
A NATO garantiu a segurança das cidades ocidentais. Os movimentos mais ou menos radicais, mas com “curriculum” demarcaram-se do golpe. Fontes não identificadas da Defesa dos EUA referiram “não poder garantir que o grupo extremista não tivesse material nuclear”, chamando recorrentemente a atenção para os perigos do seu manuseamento. Por todo o mundo populações inteiras avaliavam os mais variados boatos. O mais persistente de todos identificava como centro geográfico da chantagem uma pequena aldeia nas fronteiras da Europa e da Ásia. Uma aldeia cuja população havia partido à medida que outros protagonistas iam chegando. Era ali que estavam instaladas as rampas dos mísseis, “que afinal existiam”.
As declarações, os telefonemas e o “bluff” prosseguiram durante 36 horas nas televisões internacionais. A meio do segundo dia de crise aguda, uma enorme explosão varreu a remota aldeia. Os comunicados oficiais referiram que o grupo extremista detinha de facto um engenho nuclear, o qual havia explodido quando o haviam tentado lançar. No entanto fora do circuito dos media internacionais outra história corria: um míssil de enorme potência, lançado de um submarino, apagara a aldeia do mapa.
As populações mantinham-se confusas e assustadas. Dali a dias, por todo o mundo, grupos às centenas comandados por “vigilantes” concluíam que a única forma de escaparem aos mísseis dos inimigos ou dos amigos era não terem terroristas por perto. Denunciaram-nos e expulsaram-nos. Quem tinha um nome relacionado com algo suspeito teve que mudar de vida. A bem ou a mal. O terrorismo com causa e com nome tinha chegado ao fim. Outra história estava apenas no começo.
"Do Golfo !?… Não tenho "pendentes" no Golfo... quem é que me quer falar do Golfo? Porque não vai para a bicha como os outros...."
No caos que envolve o fecho dos noticiários, entre ecrãs e mais ecrãs, numa torrente de decisões, o “falcão” colocou a chamada nos auscultadores.
- … fala o movimento para a libertação do Sul ... exigimos que nos coloquem de imediato no ar... têm 60 segundos…
A história mais ambígua, mais mal contada e mais decisiva de sempre estava prestes a começar.
Nesse momento numa outra linha, o Pentágono solicitava que a chamada fosse colocada no ar. O “falcão” pressentia que algo estava para acontecer. Num segundo tudo mudou: de uma noite sem história para a maior crise de sempre. Enquanto chamava o Bill e o Manolo, os coordenadores da noite, o “falcão” disparou o spot “something fast”. Nunca havia sido usado, mas desde há uns anos estava pronto a ir para o ar. Sob o indicativo “breaking news”, e um fundo azul do planeta suspenso no espaço, a vermelho destacava-se o subtítulo “something…”
A confusão no estúdio era imensa. As chamadas não paravam e os acontecimentos sucediam-se vertiginosamente. Na linha 9 a chamada misteriosa aguardava. O sistema telefónico indicava tratar-se de uma chamada de um telefone móvel por satélite, algures na região do Golfo Pérsico/Médio Oriente.
- ... é uma brincadeira idiota, vamos avançar com a peça sobre o México ... - referiu Bill, prontamente interrompido por Manolo. Tinha passado um minuto e a Casa Branca estava em linha pressionando para que colocarem a chamada no ar: “vão colocar no ar a chamada dos tipos. Deixem-nos falar à vontade... tentem mantê-los a falar o mais tempo possível... esta linha fica aberta para nós...”
O “falcão” colocou de novo a 9 nos auscultadores e preparou-se para a colocar em emissão. “… estamos prontos…”, disse ele.
A emissão avançou... “CNN breaking news... something… vamos colocar no ar uma chamada telefónica feita em directo... a partir do Golfo Pérsico...”
Durante alguns segundos parecia o vento e o mar, cortados por sinais electrónicos.
- “... em nome dos povos explorados do Sul... exigimos aos fascistas do Ocidente que cumpram três condições: terminem para sempre as transmissões de televisão por satélite para o hemisfério Sul; libertem os nossos irmãos prisioneiros e escravos na Europa, na América e na Ásia; abandonem em definitivo todos os territórios ocupados no Médio Oriente, na América, em África e na Ásia... têm 24 horas... não pretendemos negociar coisa alguma... se falharem, o vosso novo ano começará como nunca pensaram ser possível... três cidades ocidentais serão atingidas por mísseis nucleares... dentro de 30 minutos queremos ver os primeiros sinais de boa vontade da vossa parte...”
Enquanto isso, no Pentágono o gabinete de choque denominado "a derradeira chantagem" ouvia a chamada. Washington estava ao corrente. Há semanas que os satélites espiões registavam os fluxos de dados que entravam e saíam de um pequeno barco no Golfo Pérsico. Tratava-se de um grupo extremista, sem ligações politicas de peso, praticamente isolado e seguramente sem capacidade de lançar mísseis nucleares. No entanto, todos os cuidados eram poucos. Chantagem é chantagem e o que se passou nunca chegou a ser inteiramente esclarecido.
A NATO garantiu a segurança das cidades ocidentais. Os movimentos mais ou menos radicais, mas com “curriculum” demarcaram-se do golpe. Fontes não identificadas da Defesa dos EUA referiram “não poder garantir que o grupo extremista não tivesse material nuclear”, chamando recorrentemente a atenção para os perigos do seu manuseamento. Por todo o mundo populações inteiras avaliavam os mais variados boatos. O mais persistente de todos identificava como centro geográfico da chantagem uma pequena aldeia nas fronteiras da Europa e da Ásia. Uma aldeia cuja população havia partido à medida que outros protagonistas iam chegando. Era ali que estavam instaladas as rampas dos mísseis, “que afinal existiam”.
As declarações, os telefonemas e o “bluff” prosseguiram durante 36 horas nas televisões internacionais. A meio do segundo dia de crise aguda, uma enorme explosão varreu a remota aldeia. Os comunicados oficiais referiram que o grupo extremista detinha de facto um engenho nuclear, o qual havia explodido quando o haviam tentado lançar. No entanto fora do circuito dos media internacionais outra história corria: um míssil de enorme potência, lançado de um submarino, apagara a aldeia do mapa.
As populações mantinham-se confusas e assustadas. Dali a dias, por todo o mundo, grupos às centenas comandados por “vigilantes” concluíam que a única forma de escaparem aos mísseis dos inimigos ou dos amigos era não terem terroristas por perto. Denunciaram-nos e expulsaram-nos. Quem tinha um nome relacionado com algo suspeito teve que mudar de vida. A bem ou a mal. O terrorismo com causa e com nome tinha chegado ao fim. Outra história estava apenas no começo.
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* Público, Futuro, 30 de Dezembro de 1996.