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sábado, 3 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 24


Chirico
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Nos blogues há um espaço que se ocupa: um universo de bits, elementos discretos, um jogo de inscrições possíveis. A escrita tornou-se subitamente num vaticínio quase sem fim, cujos moldes voltaram - e estão - a ser sonhados na vertigem da actualidade. Mas nem sempre foi assim. A escrita brotou um dia como a água brota das fontes: como um milagre. É por isso que a memória dos tempos mais antigos, sempre associada aos vultos mitológicos que Vico designou pelas “gentes heróicas” que “não colhiam outros frutos que não os naturais”, está cheia de genealogias que fazem da tradição uma sucessão acautelada de escritas. Um bom ‘incipit’ vivia desse apetite mineral: garantir ao leitor que havia outro mundo para além da escrita, sempre que a escrita falava diante dos seus olhos (ou tão-só se fazia ouvir).
Esta transcendência generosa dá-nos a perceber mais facilmente, como escreveu A.Manguel, por que é que datam do século IX as primeiras ordenações a requererem “o silêncio dos escribas no scriptorium monástico”. Até aí, no Ocidente, a leitura respeitava a voz que a suscitava e por isso se fazia invariavelmente em voz alta. Como se a escrita fosse um tributo para com a fonte que a teria feito miraculosamente brotar.
A Escritura e a escrita sempre se separaram ao longo de séculos: a primeira teria vindo do fundo (omnisciente) da fonte, enquanto a segunda ia emergindo, a pouco e pouco, de um fontanário apesar de tudo mais recolhido. Até nos aproximarmos dos nossos dias, é verdade que houve escritas que se impuseram como Escrituras e houve Escrituras que se reduziram a simples escritas. Mas, independentemente das trovoadas e da tenacidade das revoluções, sempre se mantiveram as separações, as indizíveis maravilhas e as sacralizações. A própria ideia de “escritor” - a deambular como um génio nas praças de oitocentos e de novecentos - não deixou de herdar o peso destes fontanários mitológicos, referências para todo o tipo de urbanização mental e psicológica.
Durante o século passado, os filósofos da literatura (deixem-me caracterizá-los assim) andaram durante anos a tentar explicar o que era a “literariedade” e baptizaram-na como uma espécie de água benta, ou de espírito santo cordato, que navegaria na pena e no molde ímpar de certas almas. O ‘livro’, na sua dimensão de objecto perenemente sacralizado, foi assim concedendo à literatura a aura de uma actividade que “não colhia outros frutos senão os sobrenaturais” (parodiando Vico). Kant - muito dado ao sublime - preferia a palavra “génio”.
É verdade que, hoje em dia, a literatura já não corresponde à ideia que foi sendo formada desde há pouco mais de dois séculos no Ocidente (de Schlegel a Garrett, a Holderlin, a Musset, a James, a Proust, etc.): a arquitectura digital, o circo mundializado de imagens, a hipertecnologia e a redução - sobretudo - das Escrituras a simples escritas alteraram radicalmente as coisas. O “escritor” é hoje alguém que agencia ficcionalidades e não mais o fruto de uma iluminação subliminar. A sacralização dos alfabetos e dos seus brilhos, herdada desde aqueles tempos originais que Vico soube tão bem inspirar e expirar, transformou-se, hoje em dia – em primeiro lugar na rede -, num puro processamento discreto de dados, grafos e gestos.
A expressão dos blogues corresponde, na contemporaneidade, a uma metamorfose curiosíssima porque está a reflectir, de modo dir-se-ia cristalino, esta transição abrupta entre um legado marcado pela sacralização da escrita e a sua mais alucinante e total dessacralização.
Há três aspectos particulares que dão a esta mudança uma acuidade quase única:
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a) Os blogues constituem uma categoria expressiva muitíssimo maleável que introduziu na rede, um pouco ‘contra natura’, um quadro de clara individuação. Esta singularidade, já aqui abordada, veio permitir o imediatismo da edição sem o peso das tradicionais mediações (de início, entre Deus e o profeta havia uma voz, depois um anjo, depois ainda uma exegese; na literatura, de início, houve os scriptoria, depois os editores e depois ainda a crítica). Esta remoção da imediação, apesar da necessária lógica dos “hosts”, dessacraliza completamente a ideia de uma forma – ou de uma escrita - que remete sempre para outrem. Trata-se de uma autonomia subitamente descoberta e ainda, por isso mesmo, sem um rosto estável.
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b) Os blogues põem decididamente em causa o espírito do ‘Livro’ como desígnio salvífico do escritor oitocentista e novecentista. Durante o fulgor moderno, a actividade do escritor era socialmente dominada por um carácter deífico. A questão atravessava regimes e modos de codificar o futuro: Hemingway, Camus, Céline ou os anónimos escritores que escreviam no “Palácio da Cultura” de Varsóvia eram, sempre, independentemente das tergiversações, “escritores”. E essa era uma marca indelével: a “declaração do escritor Y”, a “censura ao escritor Y” e o “congresso de escritores com a presença de Y” eram frases que pertenciam inevitavelmente à galeria hierarquizada do espaço público de então. O pasmo e a realização máxima dos escritores era o surgimento do "Livro". Era o tudo ou nada de um processo que, depois, a juzante, tinha - e ainda vai tendo, embora já com alterações de significado - os seus Passos Perdidos e a sua élégance royale (prémios, recepções, inspirações políticas e outros pendores de considerada e pública moralidade).
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c) Os blogues põem em marcha uma (paradoxal) instrumentalidade poética: a linguagem visa a linguagem. Isto quer dizer que a linguagem se enraiza e se virtualiza ao mesmo tempo no quotidiano. Ou, por outras palavras, que os factos e a linguagem escorrem em espelhos paralelos através da voragem do efémero que enuncia uns e outros (trata-se de um novo mapeamento da experiência). Nesta linha de ideias, a linguagem dos blogues e a realidade que nela se virtualiza estabelecem, instante a instante, uma permanente e mútua relação metonímica que pressupõe a ilusão de uma verdadeira imersão no quotidiano. Esta quase ‘Life live’ procede (da atitude) da crónica do dia-a-dia mais próximo, mas distancia-se da modalidade do diário literário, do mundanismo genérico da crónica e do “microrealismo” das novas poéticas pela sua radical dessacralização, já que nela não há, com efeito, um ‘exterior’ (na esfera literária, havia sempre a imanência do “seu mundo”). Na blogosfera, o ‘de dentro’ e o ‘de fora’ – que sempre pressupuseram a transcendência - comprimem-se e estendem-se hoje no caudal da procura expressiva e da linguagem (que a si própria se visa).
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Como em tudo na vida, a dessacralização do “tom” dos blogues também tem uma história. Mas esta é uma história apenas do presente. Trata-se de algo que nunca antes se viu: uma epistemologia histórica feita liminarmente com materiais suscitados pela ‘projectualidade’ passageira do presente.
Eis outro tema – não menos cativante - a pedir reflexão.
A procissão ainda vai no adro.