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sexta-feira, 2 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 23

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Há na atmosfera expressiva dos blogues um óbvio pendor lúdico.
Está (e estará) ainda por caracterizar a complexidade retórica, a variedade temática e os modos de incidência que presidem ao mise en scène deste generalizado hedonismo.
Há reflexões recentes (entre outras, de G. Lipovetsky em O Crepúsculo do Dever) que estabelecem uma ligação directa entre a ideia ancestral de dever e um conjunto de manifestações de cariz lúdico que passaram a dominar o panorama do quotidiano. Seguindo esta lógica, nos tempos dominados por explicações totalizantes de natureza divina ou ideológica, o dever correspondia a um conjunto de imperativos muito interiorizados que se orientavam, ou para o altar da salvação divina, ou para o altar da república visionária e laica. O esvair destes “códigos totalizantes” veio reorientar, de modo súbito a inapelável, a entrega que o dever antes pressupunha e constituía. A sublimar o vazio das antigas liturgias do dever, um novo leque de actividades acabaria assim, nas últimas duas décadas, por emergir no horizonte da subjectividade contemporânea, nomeadamente: a massificação do consumo (os novos templos), o vórtice da informação e da comunicação (a telecracia doméstica e a ciberpermanência), a sobrevalorização narcísica do corpo e, por fim, uma crescente autonomia hedonista de cariz individual (novos tipo de lazer) e a própria invisibilidade ética (o estar para além do bem e do mal e de todas as referências clássicas de feição dicotómica).
Diferentes expressões do lúdico saltaram assim, nos últimos anos, para o patamar do nosso dia a dia.
Em foco estão, entre outras, a questão da eterna juventude do corpo, o renovado mito fáustico da saúde perpétua, a elegância ecléctica dos ginásios (solários, bronze, o imaginário modelo, etc.), a depuração dos mecanismos expressivos (a morte da sintaxe, recolocando, como nos tempos da oralidade, uma sobreposição do eixo da coordenação sobre o da subordinação; a proliferação de lugares-comuns fáticos; a desapropriação de regras acentuação; o emprego de adjectivos no lugar de advérbios, errância rotunda no campo das concordâncias e da ortografia, etc.) e a “hiper-mobilização do stress” como modo de compensar a “reciclagem completa” do corpo. Como David Le Breton escreveu, a própria oposição clássica entre corpo e alma passou hoje a ser uma oposição “entre o homem e o seu próprio corpo”:
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O corpo deixou de ser uma incarnação irredutível, sendo antes uma construção pessoal, um objecto transitório e manipulável, susceptível de múltiplas metamorfoses de acordo com os desejos do indivíduo. Se dantes o corpo encarnava o destino da pessoa, a sua identidade intangível, hoje é uma proposição a afinar e a restaurar permanentemente. Entre o homem e o seu corpo tem lugar um jogo, no duplo sentido da palavra. De forma artesanal, milhões de indivíduos assumem-se enquanto bricoleurs inventivos e incansáveis do seu corpo. A aparência alimenta agora uma indústria inesgotável.” (RCL, 2004)
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A par da massificação do consumo, dos fluxos comunicacionais, da invisibilidade ética e do individualismo hedonista e narcísico, a euforia da mobilidade tornou-se, também, nos últimos anos, num factor vital para entender a inscrição do corpo nos nossos tempos. A mobilidade contemporânea está cada vez mais associada ao desejo que as simulações instantanistas de cariz hipertecnológico têm vindo massificadamente a criar. É essa a lógica do metafórico “GPS” que traduz a vertigem de estar em todo o lado em todos os momentos, vivendo a ilusão do controlo, de tal modo que a passagem ou travessia da viagem se subsume quase sempre ao destino último: o que interessa é chegar. Mas depois de chegar, partir torna-se, de novo, no leitmotiv deste incessante fluxo de viajar: seja nas potentes indústrias das férias, seja no ritual contemporâneo das “pontes” entre fins-de-semana e feriados, seja nas longas filas das horas da ponta.
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Os blogues reflectem inexoravelmente este estado de coisas: viajam entre motores de busca numa contínua viagem muito para além da circumnavegação territorial; replicam, ironizam e parodiam a circulação de dados dos média, suspendem as suas narrativas através da frequente ostensão do risível, convidam amiúde à hipérbole, sugerem quadros quotidianos onde o privado e o público intencionalmente se fundem; enfim: consomem, na sua larga maioria, o ardor a linguagem para o devolverem à própria interacção blogosférica. Ciclo viciado e vicioso da expressão corrente dos blogues que, mesmo nos mais ‘sérios’ (aqueles que tentam evitar a máxima de Pirandello “A violação das regras sem razões torna-se cómica”), acaba por revelar-se na confissão dos excursos (o famoso “Judeu errante” do Abrupto), nas polémicas sarcásticas ou no mais puro motejo.
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Deixo, por fim, um brevíssimo quadro exemplificativo que reflecte este hedonismo que oscila entre a sátira, o olhar antitético, a boa disposição, a ironia avisada, a descrição desveladora de contextos risíveis, o entretenimento fugaz e a narração entrecortada e sem meta (os exemplos podiam ampliar-se aos milhares, como se sabe).
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O “maradona”, por exemplo, não sabe ungir a sua poderosa escrita de outro modo, dessacralizando todos os registos e fazendo da consanguinidade entre surpresas um modo de vida e de análise. Uma expressão rara, às vezes melodiosamente desconcertante:
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Para além da incapacidade genética dos franceses para criar, desde há 20 anos a esta parte, um mau jogador de futebol que seja (até aborrece), o Tigre, caso também não tenham reparado, vai desaparecer do estado selvagem em 25 anos. Um dos misticismos mais enraizados é o descanso provocado pelo olhar desatento através da vasta rede de parques e reservas naturais da India."
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Entreter significa também dar paz ao olhar e confinar essa atitude ao vaivém descontraído texto. A deriva e a contemplação da deriva surgem assim no mesmo discurso, como se a actualização da palavra e o acto que a acompanha fossem uma e quase a mesma coisa:
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Lisboa, sol, luz, calor. Passear por entre obras, carros, confusão. E destilar. A feira do livro, a subir e descer o parque, pelo fim da tarde será o remédio para este dia.”
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O texto marcado pelo hedonismo pode até tornar-se “lapidar” e mergulhar na urgência poético-literária, levando-nos a passear entre o mimetismo do lúdico mais perfeito e a sede do humor que se apodera dos nómadas em tempo de expiação (ainda que tosco e escatologicamente vadio):
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Porque é sábado e é tarde (para mim, cujas noites começam à tarde), e porque já enfiei três horas de TV, que incluiriam um filme sobre tornados, a Múmia, um especial sobre a mais bela bandeira feminina, maus-tratos a menores e o guiness para os cantares alentejanos, partilho com os amigos uma frase lapidar sobre o amor, ouvida esta semana (à espera de coragem para contar, é certo), num café qualquer de Lisboa, por um jovem de cerca de cinquenta anos: ‘O verdadeiro amor é estarmos os dois na cama e não se distinguir pelo cheiro quem é que se peidou’. Fiquei tão incomodada que o certo é não me ter esquecido. Agora, soçobra-me o riso alarve."
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A moldagem expressiva da linguagem (não é só o “maradona” que se consome em minúsculas) é também uma parte desta demanda lúdica, mesmo quando a impressão criada pela linguagem cativa o leitor através de parábolas climatéricas – o sempre desejado ‘Verão’ – e de livres evocações mais ou menos “panteístas” do corpo:
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“(...) é em dias como estes que se deve seguir o exemplo de marilyn em the seven year itch: toca a pôr a roupa interior no congelador uma ou duas horitas antes de a envergar./ ou isso ou a maré baixa na fábrica com aquelas ondinhas mansas em massagem panteísta (e aviso já que se não sabem o que é a fábrica também não vos explico)."
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Às vezes, o horizonte hedonista coloca tudo ao mesmo nível. É uma forma sigilosa de parodiar. Funciona pela omissão de contextos e pela colocação da palavra (neste caso, a palavra “regime”) no meio de outras embarcações que procuram sentido (neste caso, a embarcação sem zénite onde Conan Doyle lutará, ainda hoje, com o leme do acaso). A história torna-se desta maneira num conjunto de marés que perderam o contacto com as suas luas: não caminha para lado nenhum e permanece imersa na infinda caldeira do presente. Sign of times:
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"Na linha da notícia do Correio da Manhã que noticiava qe o General Humberto Delgado teria completado recentemente o seu centésimo aniversário se não tivesse sido morto pelo regime, estamos em condições de avançar que Sir Arthur Conan Doyle celebraria hoje 147 anos se não tivesse morrido em 1930. Sir Arthur sofria de angina do peito.Obrigado Google pela memória." (22/05/06)
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E ainda: uma caracterização da identidade à força da comparação mais coloquial e imediatista:
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Em Portugal existe:
- um oceanário para meter os peixes;- um zoológico para meter os animais;- um jardim botânico para meter as plantas;- um QCA para meter os empresários;- uma CGA para meter os dirigentes de topo das estatais e os políticos de carreira; e - um governo para meter os fiéis.Com a quantidade de borboletagem que por aí anda não se poderia criar também um borboletário?”
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E ainda: um abreviado ‘ressort’ doméstico sem qualquer tipo de pudor:
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"A minha prateleira de discos V
A seguir ao Elvis vem o Emanuel."
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E ainda: um desprendido tiro ao alvo. Todo ele uma arejada montra de prazer:
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"Prognósticos antes do jogo: Pacheco Pereira-Costa - 8, Rangel-Carrilho - 0. E se fosse um jogo de ténis - 6-0, 6-0, 6-0. E se fosse patinagem artística?"
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E a terminar, esta ilustre via atravessada pelo divertimento do diálogo. A imagem junta-se às “pérolas” e faz da doce ironia um díptico de graciosidade:
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"Portanto, amigo Rodrigo, aqui fica esta pin-up culta e informada, a avaliar pelo interesse em Geografia, nos folhetos turísticos e nos Guias de Portugal da Gulbenkian que parece estar a consultar. O cinto de ligas é um pequeno apontamento que não significa mais nada a não ser o empenhamento descontraído na procura do Saber. Com o colar de pérolas, claro está."
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