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sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 35
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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E ao sair da Cruz dos Remolares, depois de encarar a luz do sol em forma de trevo, tive quase a ideia de ter visto um imenso pavão que, nos antigos banhos públicos, anunciava com voz humana coisas bem estranhas que se estão a passar nesta cidade de Lisboa. Disse-me essa visão que hei-de encontrar, no local dito de S. Paulo, o homem com várias vidas, o qual, parecendo morrer, continua vivo no seu corpo e espírito, viajando por esse mundo fora com o encanto interditado pelos muitos deuses criadores. Mais disse esse pavão de penas agitadas que o sol, no último dia da sua aventurosa vida, há-de desaparecer por minutos e desse eclipse nascerá, em certa cidade do mundo, um outro homem tão estranho como o de Lisboa. E enquanto regresso ao túnel da Rua do Alecrim e me encaminho agora para o Terreiro do Paço, mais ainda sinto que esse dia está para breve.
Durmo enrolado a jornais nas traseiras da gare, sonho e visiono coisas que escapam à ordem natural das coisas, mas não se pense que ando apanhado pelo cavalo ou por chutos de seringa infectada, nada disso. Nunca fui drogado, nem mafioso, nem sem-abrigo rotulado na testa, embora experimentasse tudo na vida. O que vejo e ouço são palavras sem som, são sons sem sentido, são sentidos sem norte. Se tivesse vivido há dois milénios e meio, talvez fosse profeta. Contudo, nesta vida de desnortes, carências e muitas dúvidas, aprendi a recortar retalhos de verdade através das figuras que as nuvens desenham neste estuário milagroso do Tejo. Subitamente, eis-me chegado ao Terreiro do Paço e as arcadas, a abertura do espaço, o arco regenerado e as colunas e colunatas voltadas para o rio definem subitamente um equilíbrio e geometria únicos que apenas, na velha Alexandria, se terá sonhado ou imaginado. Isto é o fogoso corpo iluminado ou iluminista, misturado com a perdição e talvez com a prova de uma beleza desencantada e em suspenso. Só aqui, neste breviário de encontros, poderiam emergir coisas estranhas que Lisboa conhece e que estão prestes a desocultar-se.
Neste locus da ordem e da delicadeza de contornos que é a Praça do Comércio, há uma memória do antigo Terreiro que era avermelhado, cheio de varandas contíguas e desalinhadas, quase flamengo e aberto apenas às marés, ao grande torreão do Paço e ao ímpeto mercantil da lendária Rua Nova. Isaías lembra o velho traçado, o ruído ao fundo da hecatombe, a tragédia precipitada e, diante de tal ondulação irregular da Ribeira das Naus, despontaria já, nesse ímpeto terrível de 1755, a nitidez, a definição e o rigor das formas anunciadas. Depois do estertor, veio o esquadro, a norma aparente e o tempo da magia só já submersa. É essa a história e a causa das coisas estranhas que se anunciam em Lisboa. No centro da actual Praça, D. José I ainda aspira à idealidade de um centro quase perfeito e, para sugerir essa mesma demanda imaginária, o cavalo em bronze que o transporta levanta, com imprevista leveza, uma das suas sete patas.
Ao entrever a fantástica desproporção, neste mundo esculpido pela maior das arrumações e aprumos, Isaías apenas consegue imaginar a ideia de voo, de descolagem, de Ícaro momentâneo que se aprestasse a sobrevoar e absorver o Tejo. É essa a sua visão mais momentânea que, entre a nuvem do comedimento e harmonia, aspira ao delírio e aos mil sortilégios que se possam supor. Mas Isaías sabe também que, desde os acenos em matéria de Ode ou verso popular até ao canto do Café Martinho da Arcada e ao recato do Cais Sul-Sudeste, nada mais paira senão mistérios, vogas marítimas, maresias de uma qualquer agonia luminosa e visionária. Isaías cruza em diagonal esta Praça Maior de Lisboa e não esquece de maneira nenhuma o pavão que, com voz humana, falou em alto e bom som de um tal Adão, Caim e Abel em trânsito por Lisboa; era um pavão que a luz do sol da foz do Tejo transformou em efígie na cabeça caprichosa e sonhadora de Isaías.
É verdade que, para Cesário Verde, os desejos absurdos de sofrer deverão ter tido origem nesta excelência e graça por decantar, talvez algo veneziana, mas também solar e atlântica, e sobretudo cheia de brumas escondidas sob a pele de tanta geometria aparente. Isaías encosta-se aos arcos do norte, junto aos alfarrabistas, e conta pelos dedos. Conta apenas números, esse mote abstracto, ou estrutura da imaginação, ou esquadria anterior a qualquer acto; Isaías repete muitas vezes esta operação: com o polegar conta números, apenas números durante um tempo quase infindável. O Terreiro do Paço, confessa o próprio, é um dos resultados aproximados do insondável compasso dos números. Por trás da geométrica cadência bachiana, o ritmo dos arcos nasce, emerge e parece anunciar uma música silenciosa que, à noite, empresta ao amarelado das luzes um incerto vaguear de sigilos, de silhuetas imersas pela vertigem pessoana; alaridos distantes de paquetes, navios e naus antiquíssimas irrompendo pelas correntes do grande rio das Tágides; desafiando a barra, o oceano, até o universo. É essa a sua senha: entre a morte e a pulsão da aventura quase total, pensa Isaías sem o dizer por palavras.
Para Camões - dizia o fadista e poeta do engenho - o sublime som do seu estilo grandiloco e corrente, ditado ou implorado às Musas do Tejo, mais não era do que um mar espesso de enigmas e segredos que, por natureza, se atravessa no caminho de todas as histórias impossíveis de contar, de narrar, de esclarecer. A própria Praça do Comércio é, ela mesmo, uma história por contar. Lisa e ampla, este espaço de números também por calcular prepara e acarinha a partida das grandes viagens, a invocação dos grandes poemas, a margem de toda a divagação. Porventura, também alimentará os que vêem a sua alma incendiada, o coração repartido, a ousadia abismada. Por trás do equilíbrio do Paço e das geometria modelares, os anjos de Ulisses abrem as asas e conseguem voar até à memória mais antiga do fascínio. Quem verá esses anjos, sob a forma de pavão, fado, ou luminária... a sobrevoar visões, letras, passos, amores encantados; tragédias da natureza, ou tão-só os simples números que Isaías continua ainda a contar com os seus dedos turvos de clochard?
É esse pasmo sem tradução que Isaías sente e que consigo traz na retina carregada, sempre que, por artes de fortuita passagem, lhe advém ao olhar este ancestral Terreiro que hoje é a talvez aparente Praça do Comércio. E por isso repete: disse-me a visão desta alvorada que hei-de encontrar, no local dito de S. Paulo, esse homem de várias vidas, o qual, parecendo estar morto, continua ainda vivo no seu corpo e espírito, cruzando mundos e o mais que a natureza e os deuses criadores desde o princípio interditaram. Isaías acompanha o pôr-do-sol atrás da ponte suspensa e revê, na sua mente de estilhaços puros, as várias bússolas e indícios do pavão visionado. Tudo iria ocorrer, um dia, perto das naves do Mercado da Ribeira. Mas a tempo, espero, hei-de admoestar esse Abel desafortunado. Talvez haja já quem o tenha denunciado pelas muitas pragas que nos chegam do Oriente, do Egipto e até aqui dos Remolares e da Boavista. Hei-de admoestá-lo pelos muitos perigos que decerto correrá, dizia.
Fez-se noite e Isaías retoma agora o seu caminho habitual em direcção às portas neo-góticas que limitam a sul o parque automóvel da EDP, junto à Praça de D. Luís I. No esconso da portada, já aí chegaram, entretanto, o pirata, antigo jogador e corretor; o velho Mateus, ex-presidiário convertido ao budismo; o Nativo, reformado da lotaria; o Lémur, apeado de chulo e, por fim, Silvestre que, nos tempos áureos, fora campeão de natação em Algés. E Isaías repetiu para quem o ouvisse: Que pode um clochard ver diante dos seus olhos, senão a fotografia de algo que já foi, sem lugar nem tempo, mas que se perpetua no inefável desejo de apenas ser? Apenas isso, disse Isaías, mas sem jamais o ter dito através de tais palavras. Chegará depois a sopa dos pobres, a noite, mil luminárias, e Isaías continuará, apesar de tudo, a pensar que, na sua frente, o mundo não é um simples encadear de lugares e de factos, onde tudo se encaixa e se explica. Diante de si, o que luz é a própria matéria, a própria vida em movimento, embora desfocada do seu lado imediato, directo, actual.
O profeta desempregado dos nossos dias é este tipo de clochard que, em diferido, consegue transmitir, talvez a ninguém, recortes e retalhos da verdade que só ele entende, por via das mil figuras desenhadas nas nuvens mais baixas, após o crepúsculo. Isaías ama Lisboa e acima de tudo o Tejo. Adorava tornar-se, ele mesmo, na cor dessa água nocturna. Adorava ser o pavão vislumbrado na alvorada desse dia, magnífico nas suas cores de framboesa e ventura. Adorava poder cantar como o velho Adão, correr como o destemido Caim, contemplar como o reservado Abel. Adorava ser tudo isso, ao mesmo tempo. Talvez devido a esse desejo, sempre vivo e sempre ocultado, Isaías tenha explicado que a vida marginal e noctívaga, à beira desta 24 de Julho, não é senão a sapiência do acaso, a doutrina dos desacertos e a instrução da perdida providência.